Para o bem e para o mal, futebol enfeitiça estatísticas
Copa do Catar lembra que ineditismos e números prodigiosos não garantem triunfos históricos, muito menos a consagração na memória coletiva
O futebol desperta resenhas com o terno dos números, adornadas de cifras, linha alta, linha baixa; e resenhas brejeiras, despidas de estatísticas, com os pés descalços da sabedoria popular. Uma alimenta a outra. Ora se irmanam, ora se distanciam igual dimensões paralelas.
A primeira concentra-se na matemática dos rendimentos, recordes, esquemas. Mesas-redondas os radiografam como se concorressem ao Nobel de física.
Sob o farol das cifras, o prodígio Mbappé pode ser aproximado à largada de Pelé. Cifras não capturam, porém, a mágica do rei sobre o goleiro uruguaio Mazurkiewicz em 70.
Nem um milhão de replays evitariam a surpresa cada vez que se revê o drible desconcertante. Reverencia o pacto com o imponderável.
Para espanar o pó do esquecimento, uma grande jogada, uma grande vitória, um grande time precisam extrapolar os números. Devem beijar o insondável, beirar a beleza inalcançável e imprecisa das estrelas.
Por isso a finta de Pelé é mais recordada, mais cultuada, do que os gols maravilhosos do tri. É eternamente lembrada porque ilude o previsível, ultrapassa a borda do cálculo, nos conecta com o transcendente.
Por outro lado, a matemática cumpre papel didático no mundo das chuteiras. Desvenda táticas, desempenhos. Calibra a balança que distribui atletas, equipes, competições em prateleiras dominadas por interesses midiáticos e econômicos.
Tal hierarquia conduz desde provocações entre torcedores até decisões esportivas, comerciais, políticas. Distingue o regular do ótimo, o ótimo do excepcional, o excepcional do antológico, o antológico do épico.
Ainda assim, números marcantes não asseguram o olimpo da memória e do afeto. Lavrada nos botecos, essa consagração corteja o inexato.
O inexato nos deu Garrinha. Seu empeno anatômico o desenganava ao esporte, à vida. Para nossa sorte, o prognóstico científico sucumbiu às asas das pernas tortas. Ziguezagueavam ligeiras que nem gaivotas.
Os dribles e arremates decisivos de Garrincha caminham vivíssimos graças não só aos troféus mundiais. Imortalizam-se por debocharem do esperado, do calculável, do destino. Por reproduzirem gloriosamente a fantasia do pique, o gosto de infância.
O sorriso matreiro dos gramados passeia no Catar. Testa previsões, convicções, desafia músculos estatísticos. Vários atrofiam com velocidade pedagógica. É o caso do aproveitamento de 80% ostentado pelo Brasil de Tite. Revelou-se insuficiente ao reencontro com o caneco e com uma campanha empolgante.
Igualmente efêmera mostrou-se a aura histórica em torno da barração de Cristiano Ronaldo e da estreia arrebatadora do substituto Gonçalo Ramos, três gols (hat trick) nos 6 a 1 sobre a Suíça. Acabou pulverizada pela desclassificação portuguesa para os marroquinos.
Primeiro africano na semi, Marrocos sequestrou o confete histórico. Só o título o estenderia além do reconhecimento enciclopédico.
O Brasil 2022 tende também a se desbotar. Não por ter adiado o hexa, e sim pela falta de algo capaz de resistir à decantação temporal.
A queda logo se apagará, como o golaço de Neymar evaporou ao frigir do empate e do castigo nos pênaltis. Pouco se falará sobre esse enredo depois das análises condicionadas à espuma da decepção.
Bem diferente da tarde fatídica no estádio Sarriá, lá se vão 40 anos. O hat trick de Paolo Rossi gruda na lembrança até dos que não eram nascidos. Os italianos não aniquilarem apenas a certeza do tetra. Afrontaram a soberania artística verde-amarela, expressa na orquestra formada Zico, Falcão, Sócrates, Júnior. Imperdoável.
O acidente de percurso retirou o timaço da Copa na Espanha, não do imaginário. Aquela escalação vem fácil. Exclusividade dos escretes encantadores, não necessariamente campeões.
A seleção de 82 ilustra, acima de quaisquer números, os cursos nem sempre coincidentes do inédito, do vitorioso, do histórico, do memorável. Torçamos para que confluam a nosso favor em 2026.
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Resta-nos Drummond
Nenhum exercício analítico ou discursivo explica a passividade diante da ciranda croata, tampouco o tapete vermelho para o contra-ataque a quatro minutos da semifinal. Mole inacreditável. Resta-nos botar fé nos talentos emergentes, e relembrar o conforto de Drummond na crônica “Perder, ganhar, viver”, publicada pelo Jornal do Brasil em meio às lágrimas de 1982:
“Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo com tendência a evaporar-se. (…) A Copa do Mundo acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de todos nós.”
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.