Alma de peixe, Pedro Scooby vive da água desde moleque. Aos 5, já dominava a prancha. Aos 13, apinhava-se na Kombi que saía de Curicica, bairro modesto da Zona Oeste, até a praia do Recreio.
“Eu me juntava à galera que acordava cedo para o batente. Formou o meu caráter”, agradece.
Das manobras no Recreio, colheu a destreza e a perseverança coroadas com o vice mundial de ondas gigantes. Do banho de realidade na Kombi e em Curicica, indelével que nem a Itabira natal de Drummond, ele herdou o jeito simples, a lábia carioca, o gosto pela resenha, a inteligência para desacelerar a adrenalina marítima nas pequenas grandes coisas do dia a dia. Extraiu também uma solidariedade tão vigorosa quanto as montanhas líquidas que se acostumou a desafiar.
O ímpeto socioambiental flui em iniciativas como as doações para moradores de Jardim Gramacho, em Caxias, retratado pelo artista plástico Vik Muniz no documentário “Lixo extraordinário” (2010 / Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley), e de outras comunidades assombradas pela miséria, pela insalubridade, pela indiferença. É o caso de São Paulinho, em Acopiara, interior cearense.
A cidadezinha de 55 mil habitantes ganhará, em junho, uma estação de tratamento. Seiscentas famílias descobrirão a dignidade da água potável, sonegada a 35 milhões de brasileiros. A obra nasce graças à Mamba Water, empresa fundada por Scooby há um ano. Incorpora-se aos esforços de universalização do saneamento.
Para os desamparados de São Paulinho, a novidade aponta o fim de uma ausência desumana, o começo do futuro. Indica uma profunda mudança de vida, um milagre de Páscoa.
Para o surfista empreendedor de 34 anos, representa um caminho ainda mais substantivo, gratificante, de transformar dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio em felicidade. Alquimia destacada, com a habitual simpatia, num papo por vídeo:
Como nasceu o projeto de democratizar a água potável?
Desde a infância, aprendi a dividir para transformar, para tornar o mundo, o Brasil, o Rio, lugares melhores. Esta responsabilidade não é só dos governos. É de todos. Costumo me envolver em ações sociais, e procuro ampliá-las com parcerias. Passo esses valores aos meus filhos. Eles vão comigo, por exemplo, quando distribuímos quentinhas em Jardim Gramacho. Ali, a poucos quilômetros da capital fluminense, muitos não têm direito o que comer, o que beber, uma realidade comum a várias regiões. O projeto de ampliar o acesso a água potável faz parte desses esforços. Ele começou a nascer com a criação da Mamba Water, há um ano, quando decidimos que a marca incentivaria a conscientização socioambiental e a universalização do saneamento.
Como esses princípios se materializam?
A própria concepção da Mamba Water, de água em lata, envasada por energia solar, já indica o caráter socioambiental. Ele se reflete na campanha que distribui um litro d’água a cada lata vendida e na estação de tratamento que estamos construindo em Acopiara, no Ceará, com o apoio do Sisar (Sistema Integrado de Saneamento Rural). Ela vai levar água tratada a 600 famílias. Uma grande transformação na vida dessas pessoas. Um legado que vai se estender por décadas.
Por que Acopiara?
Porque é uma das regiões que mais sofrem com a falta de saneamento. Estamos falando de água. Água! Fora o oxigênio, não há algo tão elementar à vida quanto água. Milhões de brasileiros não têm ainda acesso a água tratada. Isso parte o coração. Fico muito gratificado por ajudar a reduzir essa carência.
A nova empreitada redimensiona sua relação já visceral com a água?
Sempre vivi da água, mas salgada. Até por eu ser sufista, a degradação socioambiental me incomoda desde garoto. A quantidade de plástico nos mares e oceanos, por exemplo, é alarmante. Agora penso de maneira mais global, e me preocupo muito também com a falta de água tratada, água de beber. Não estamos falando de ventilador, de internet. Estamos falando de água, o básico do básico.
Em que ações você se inspira?
Há muitas interessantes, tanto de conscientização quando de práticas socioambientais. Uma delas é o documentário “Euceano” (Globoplay), do Rodrigo Cebrian. Esses movimentos ajudam as pessoas a se conscientizarem sobre a preservação e a democratização das águas. Aliás, o pulmão do mundo não é a Amazônia, como se diz por aí. São os mares e oceanos. (Respondem por 90% do oxigênio do planeta.)
A iniciativa privada torna-se necessária para melhorar o nosso saneamento, um dos retratos da desigualdade brasileira?
O poder público precisa fazer a parte dele. Mas nós, como cidadãos, e como seres humanos, também precisamos fazer a nossa parte. A iniciativa privada é uma alternativa para combater o abandono, a falta de saneamento, para acelerar as transformações de vida.
Vocês pretendem expandir o programa a outras regiões do país?
Sim, queremos que a estação cearense seja a primeiro de muitas. A ideia é estender o programa a outras cidades, e contribuir para mudar vidas no Brasil, especialmente das famílias abaixo da linha da pobreza.
Em que aspectos o Rio e a rotina no mar estimulam seu empreendedorismo socioambiental?
O Rio integra vida urbana e natureza de maneira única no mundo. Isso me inspira a fazer coisas que cultivem o equilíbrio socioambiental. O próprio Rio precisa se reorganizar, precisa se reequilibrar diante do crescimento desordenado.
Falando da sua alma carioca, qual a primeira saudade que você matou ao reencontrar a cidade depois dos três anos em Portugal? (Scooby morava em Cascais, perto das ondas gigantes de Nazaré.)
Sou o mais carioca dos cariocas. Eu me amarro nas belezas e no lado democrático do Rio. Isso é sintetizado na praia, lugar pra todo mundo. Quando voltei, fui logo dar um mergulho e reviver a praia carioca.
E o rolé em Curicica? Também não estaria em primeiro lugar?
Claro. Sou apaixonado pelo lugar onde nasci e fui criado, onde estou cercado de gente de verdade, onde meus filhos convivem com gente de todos os tipos. O Rio tem tudo de melhor, só não é tão seguro. Não vou negar esta realidade. Mas as pessoas continuam vivendo. E o calor humano é insuperável. Povo feliz, com todas as dificuldades.
Como o Rio influenciou a sua formação esportista?
Eu morava longe da praia. Pegava Kombi lotada todo dia, de Curicica até o canto do Recreio. Ficava junto da galera que acordava cedo e pegava mais de uma condução para o trabalho. O convívio com essa realidade formou o meu caráter, e a minha vontade de vencer.
Qual o lugar ou a experiência preferida no Rio?
Curicica, claro. Aprendi muito lá. Matei no peito o orgulho desta origem e, como o pessoal diz, coloquei Curicica no mapa. Nunca deixei de frequentá-la, até porque conservo muitos amigos e meu irmão tem um bar naquela área. Outro dia mesmo, levamos um samba em homenagem a um amigo que havia morrido.
O que você, vice-campeão mundial de ondas gigantes (Nazaré Tow Surfing Challenge), espera do surfe neste ano?
Bem, o Brasil dominou o surfe. Há vários brasileiros nas primeiras posições dos rankings mundiais. Virou o país do surfe, inclusive de onda gigante. (O campeão da categoria é o conterrâneo Lucas Chumbo.) Estou animado, até por ter me recuperado de uma lesão no joelho. Espero um ano muito bacana, em que a gente surfe o melhor, se divirta e, se tudo der certo, continue a ganhar títulos.
Naqueles paredões d’água, tem ainda a vitória sobre o medo, não?
Sim. O medo é importante, para não sermos inconsequentes. Gosto do medo, porque ele se transforma em adrenalina. Eu vivo de adrenalina.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.