O locutor saudoso sonha um dia reencontrar o bordão. A saudade alcança até quem não viveu aquela apoteose cromática. Eternizadas na música do Canal 100 – “Cadência do samba (Que bonito é)” –, as bandeiras não tremulam como tremulavam.
A arquibancada se reinventa. Cânticos, dancinhas, mosaicos remediam a perda. Puxa vida, bandeiras não tremulam como tremulavam no Maraca. Por “segurança”, não podem ultrapassar 2m x 1,5m.
Algumas viram cobertores gigantes. Perfeitos ao show midiático, inertes ao baile da torcida. Se uma bruxaria calasse os tamborins na Sapucaí, não seria menos inacreditável, doloroso.
O torcedor sacode a poeira com a resiliência do órfão obrigado a digerir o vazio e recriar o caminho. A sinfonia de luzes nos celulares a tiracolo recicla o pendor carnavalesco impulsionado por Mário Filho.
Quão perplexo ficaria o pai do Maraca ao vê-lo desidratado dos grandes estandartes? O vasto tremular sumiu da vista, não da memória, nem do desejo. Comicha igual a dor fantasma de um membro amputado.
Igualmente desgostoso, o irmão Nelson Rodrigues não pouparia a pena. Jamais subestimem os idiotas, zombaria o cronista.
Por razões sociais e morais, não devemos naturalizar a desidratação dos bandeirões. Seu bailado imponente é tão indispensável à mitologia do futebol quanto a coroa ao monarca.
O estio das bandeiras na versão raiz configura um estelionato estético, cultural, simbólico. Rouba uma tradição secular – entrelace material e imaterial ao universo futebolístico – e um crédito à civilidade.
A atrofia das bandeiras tremulando paixão representa, assim como a imposição da torcida única, uma derrota humanitária. Em vez de amadurecermos mecanismos jurídicos, fiscalizadores, punitivos e, principalmente, educacionais para coibir agressões, declaramos uma incapacidade de convivência amistosa entre devoções distintas.
Se a mentalidade paliativa prevalecer, correremos o perigo de se instituir voto de silêncio no Maraca para estancar as inadmissíveis ofensas racistas, machistas, homofóbicas. Vacinas contra a violência são bem menos rasteiras do que a exclusão de bandeiras cujas hastes podem se transformar em armas.
A urgente imunização exige esforços coordenados de clubes, federações, investidores, atletas, técnicos, torcedores, autoridades. Envolve desde campanhas educativas até a aplicação de punições financeiras e esportivas aos corresponsáveis pelas violações.
Noutros tempos, lideranças como o Doutor Sócrates, cracaço de bola, um dos artífices da Democracia Corinthiana, moveriam essa força-tarefa. A inesquecível Rita Lee aprovaria.
Talvez agora nossa maior esperança mobilizadora venha dos patrocinadores empenhados em revestir a imagem corporativa de consciência social. Ainda habitam menos a prática do que a retórica.
Enquanto discursos altruístas não se materializam em ações transformadoras, bandeirões deixam de tremular como haveriam de tremular. E o Maraca paga o pato.
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Encruzilhada
A batalha pela gestão do Maracanã opõe a SAF vascaína à dupla Fla-Flu, encarregada de administrá-lo nos últimos anos. Imersa no tabuleiro jurídico, a concorrência recruta mais do que cacifes econômicos e políticos. Impõe inteligência, competência e sensibilidade empreendedoras para conciliar as ambições comerciais com uma desejável redemocratização.
Há um par de décadas o Maracanã acompanha uma elitização desencadeada nas maiores praças do futebol profissional. Desde a virada do século, a Fifa e as principais ligas europeias globalizam um modelo de estádio um tanto menor com mais gasto per capita.
A reconfiguração, pregavam gurus do marketing, seria inevitável para expandir as receitas ancoradas no dia de jogo (match day). Clubes graúdos e seus programas de fidelidade adotaram a fórmula, naturalizada sob a promessa de qualificação de serviços, conveniências, relações de consumo.
Noves fora, ir ao Maraca ficou caro à maioria dos brasileiros, asfixiada entre a corrosão da renda, a inflação, os juros altos, a precarização do trabalho. Para milhões, acompanhar o time da arquibancada aproxima-se do luxo, uma miragem do impossível.
Não pesa sobre os ombros dos gestores esportivos a complexa correção da nossa desigualdade multidimensional, expressa na concentração de quase metade da riqueza nacional (49,6%) no 1% mais rico da população. O compromisso engloba poder público, inciativa privada, ONGs, sociedade civil.
O concessionário do Maracanã e os fornecedores do espetáculo encaram uma encruzilhada. Não obstante o imperativo do lucro, tampouco a dificuldade de precificação, precisam decidir o lado da Histórica com o qual pretendem tabelar: o da desigualdade crônica ou o da diversidade socioeconômica. A escolha indicará a chance de restituir a essência popular sem a qual o Maraca e o futebol não seriam o que são.
Ave, Mário Filho!
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Quintal multicolorido
Tantas fizeram que a galera vascaína recebeu cota de visitante no clássico contra o Flu. Coisa de cartola, não de gestor profissional.
Nenhum regulamento, desavença política e disputa comercial justificam o desacerto. Tamanha barbeiragem afronta a sensatez, a memória, os negócios.
Equivale a reservar um puxadinho para a torcida do New York Knicks no Madison Square Garden. Não cola nem como piada.
Sabem os vivos e os mortos que o Maracanã é, sempre será, o quintal de Vasco, Botafogo, Flamengo, Fluminense. Um patrimônio cativo, lavrado em insondáveis tardes de domingo.
Qualquer licitação ou acordo de concessão há de contemplar essa filiação genética, indestrutível, entre os gigantes cariocas e seu palco maior. Há de convertê-la numa fonte de receita à altura do seu capital afetivo, cultural, simbólico.
Começa por compreender, de uma vez por todas, que os clubes são sócios. Interesses e aspirações particulares não devem sabotar a sabedoria e o pragmatismo para engordar a galinha dos ovos de ouro em comum, ao invés de depená-la.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.