Só os marcianos se surpreenderiam com a pronta acolhida à Copa América. A pedra estava cantada no desatino de dirigentes em manobrar competições acima da urgência sanitária. Levaram menos de 24 horas para aproveitar a desistência de uma Argentina sob a marcha pandêmica. A troca recompensa o país que soube controlar o vírus. Só que não.
Recebessem empenho semelhante o gerenciamento da crise e a vacinação, não beiraríamos o meio milhão de mortes. Não seria exagero projetar mais um tanto delas na conta da inoportuna jogada. Assim alertam dez entre dez infectologistas. Nem precisa ser doutor no assunto para reconhecer a imprudência.
Embora diminuam o risco de contágio, os cuidados sanitários nos jogos e a imunização dos 650 integrantes das 10 delegações são insuficientes para transformar a Copa América numa bolha. A ausência de público nos estádios tampouco reduz significativamente os perigos à saúde pública de um torneio desses numa hora dessas.
Mesmo atrofiada, a competição produzirá deslocamentos razoavelmente extensos de atletas, comissões técnicas, profissionais de mídia, torcedores. Desconsiderar aglomerações caminha entre a ingenuidade e o cinismo.
Ganhos comerciais e compromissos contratuais não justificam a decisão contrária aos esforços conjuntos para conter a pandemia sob a iminência de uma terceira onda. Nada é tão prioritário, tão urgente, quanto vencer a guerra e minimizar as vítimas. Nenhum interesse particular deveria se sobrepor a essa emergência coletiva.
A transferência da Copa América consagra a triangulação entre um pendor negacionista, um desapego ao bem comum em plena tragédia e uma visão de negócios imediatista. Os dividendos econômicos e políticos no curto prazo tendem a não compensar o potencial estrago de reputações e imagens corporativas debitado na realização da disputa continental em meio à epidemia ainda sem controle. Eis o nosso mais vergonhoso 7 a 1.
Há uma chance nada desprezível de patrocinadores logo perceberem a dívida moral contraída. Cada vez mais determinados a filiar suas marcas a valores como responsabilidade socioambiental e empatia, cedo ou tarde ficariam incomodados em pactuar com a contramão do interesse público, da prudência, da solidariedade, da preservação da vida. Alguns provavelmente já calculam a fatura da complacência. Investimentos não combinam com realidades paralelas.
Atletas e treinadores também se mostram complacentes. Uns talvez acreditem que a projeção midiática valha o pacto com a indiferença. Outros talvez temam que críticas, mesmo fundamentadas, respeitosas, sejam confundidas com insubordinação. Alguns talvez não identifiquem a realidade paralela, ou simplesmente não se constranjam em fazer parte dela.
Uma coisa é certa, vale reiterar: jogadores como Casagrande, Sócrates, PC Caju, bambas do pensamento crítico, não deixariam barato o cartão vermelho ao bem-estar coletivo. Sabiam a importância de o futebol e seus grandes atores baterem um bolão em consciência social.
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Super Januário
Quem também batia um bolão era Januário de Oliveira. Devemos ao locutor bordões e apelidos memoráveis. Sorte de quem ouviu o debochado “cruel, muito cruel”. Assim todo gol virava obra de um implacável algoz. Assim Januário transformava o enredo narrado numa história épica. A galera adorava.
Até o jogo chinfrim ganhava contornos heroicos. O veloz Valdeir, do Botafogo, se tornava The Flash. Sávio era o Anjo Loiro da Gávea. Não menos inesquecível foi Super Ézio, centroavante do seu querido Flu.
“Taí o que você queria”, outro saudoso bordão, referia-se não só ao pontapé inicial. Anunciava o show, a imersão no tempo mágico da bola. Januário dava corda à brincadeira. Isso, sim, era o que nós mais queríamos.
Januário morreu segunda-feira passada, de uma parada cardíaca, aos 81 anos. Fora o legado profissional, deixa uma oportuna lição: futebol não deve ser levado tão a sério. Chegamos ao ponto de colocá-lo acima da vida…
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.