Até os idiotas da objetividade admitem a falta que Neymar faz a qualquer escrete do planeta. Menos do que Messi à Argentina. Ainda assim, muita falta.
Neymar faria tanta falta ao futebol quanto Gilberto Gil à oxigenação musical. Suas belezas artísticas não lhes pouparam das pedras.
Gil foi hostilizado por simbolizar um apoio à cultura ofensivo a bolsonaristas. Neymar, por supostos desvios morais e esportivos.
O midiático camisa 10 desperta controvérsias proporcionais aos 180 milhões de seguidores. Entre os astros de chuteiras, fica atrás só de Cristiano Ronaldo (472 milhões) e Messi (360 milhões).
Do pódio digital vem a maior parte da fortuna às voltas com cobranças fiscais. Uma mina de ouro gerenciada por 215 funcionários, mostra a série documental “Neymar, o caos perfeito” (Netflix).
Os três episódios refletem menos o prodígio da bola que do Insta. A carreira de influenciador não raramente impõe-se à de atleta. Sobreviverá à aposentadoria nos campos.
Burburinhos decorrentes, por exemplo, de declarações políticas e comportamentos juvenis afinam-se à cadência do algoritmo. Quanto mais polêmica, mais audiência online, mais grana.
Tônico às postagens milionárias, a receita volta e meia colide com representações atribuídas ao ídolo. Mais do que conquistas, dele espera-se uma confluência cósmica: virtuosismo, inventividade, humildade, abnegação.
O bamba dos gramados e das redes pode não corresponder à enorme expectativa destinada aos ídolos, mitos, heróis, sequer à maturidade compatível com um profissional na casa dos 30 anos. Isso não diminui sua estatura esportiva. Não torna dispensável o seu talento.
Deixar de reconhecê-lo cheira a implicância. Mesmo em dias apagados, Neymar agiganta a seleção. Lá não está para casar com a filha do chefe, como ironizou João Saldanha ao escalar as feras de 70, e sim por ser ungido pelos deuses do futebol.
As picuinhas forjam o estigma de firuleiro. Alegria dos memes, a fama de cai-cai contraria o modelo masculino da sociedade moderna naturalizado pela cultura futebolística. Perpetua-se em velhos chavões: jogo pra homem, e homem não cai, não chora, revida.
A transgressão cobra alto. Tripudiam: se não prendesse a bola, apanharia menos. Equivale a culpar a vítima pela violência.
Neymar devia prender menos a pelota não para se imunizar das bordoadas. Embora algumas faltas pareçam evitáveis, é impossível vacinar pés tão habilidosos.
Devia soltar a bola rápido, em certos lances, porque jogaria ainda melhor. Exerceria melhor o papel de meia ofensivo para o qual é deslocado. O único capaz de compensar a ausência de um armador no time de Tite. Virtude suficiente para mantê-lo imprescindível.
A boa safra de atacantes deixa o Brasil menos dependente de Neymar. Não a ponto de prescindir do craque. Tudo anda mais fácil e belo com o craque. Pouco importa se é fominha, temperamental, imaturo.
Só o craque enxerga o invisível, fabrica atalhos, surpreende a arquibancada. Às vezes nem com o videoteipe conseguimos acreditar.
Só o craque descobre o inédito como se empinasse uma pipa no subúrbio. Dedilha simplicidade e genialidade numa comunhão delirante. Encanta até os adversários. Brinca de jogar, e nos faz sorrir igual criança.
Só o craque borra deliciosamente os desenhos táticos, as previsões. Escava pequenos milagres no chão ponderável. Desmoraliza certezas, inferniza a matemática dos esquemas. Flutua sobre os clichês com a alma passarinha eternizada por Garrincha.
“A bola o procura, o reconhece, precisa dele. No peito do seu pé, ela descansa e se embala”, sintetiza Eduardo Galeano em “Futebol ao sol e à sombra”. O escritor arremata: “Ele dá brilho e a faz falar, e neste diálogo entre os dois, milhões de mudos conversam”.
Ao craque, o gol não basta, a vitória não basta, tampouco o troféu. Alimenta-se da finta dionisíaca, da beleza, da vertigem artística. Nela, caminha imortal.
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Refúgio na ponte
Eterna também é a doce loucura repetida pelo saudoso Lula Branco Martins em jogos do Brasil na Copa. Quando a espera do gol beirava o insuportável, o ex-editor da Veja Rio trocava o sofá pelo refúgio do volante. Dirigia por onde não houvesse uma alma viva, uma tevê de boteco, uma pista sobre o confronto.
A Rio-Niterói era o bunker preferido. Ali sanfonava, solitário que nem caubói, até o fim partida. Por segurança, rodava meia hora antes de o rádio tirá-lo do exílio. Então guiava até o conforto da reprise.
Lula exponenciou, com a originalidade habitual, uma fuga sagrada de muito torcedor. Quem nunca tapou a vista no pênalti decisivo?
Compartilhadas com colegas de redação e com seus alunos da PUC-Rio, histórias assim sucediam-se como se Lula reverenciasse, a cada segundo, o espírito da arquibancada. Como se borrifasse, em cada centímetro de vida, a paixão pela Amarelinha e pelo América.
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Voz do gramado
Bruno Guimarães e Rodrygo pedem passagem, como Douglas Costa pedia no Mundial anterior. E agora, Tite?
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.