Quando a empatia se impõe à corrida pela vitória
Aos 19 anos, Vitinho abdica de contra-ataque atrás do título para acudir adversário: não é pouco diante da crise ética e das desumanidades à solta
A cena passa batido, periférica às lentes. Holofotes cortejam a iminente glória dos garotos corinthianos, donos da casa. Cruzeirenses buscam desabalados o empate que levaria a decisão aos pênaltis.
Tretas, entradas duras, cornetadas em polvorosa. Reta final, a tensão se intensifica. Cobre o campo e a arquibancada, incisiva como um arame farpado. Pouco importa a estatura juvenil da disputa que salga a tarde vadia de quarta-feira.
Fiel à máxima de Neném Prancha, a moçada parece disputar a última refeição. Aos alvinegros, o relógio empaca. Aos azuis, escorre veloz. Ainda assim, Vitinho não deixa a gentileza comer poeira.
O adversário cai e a pelota sobra insinuante. Ordena o contra-ataque. O meia do Cruzeiro desobedece.
Vitinho renuncia ao arranque igual um bólido traído pelo motor na hora da largada. Não se detém por mando do juiz, por pressão dos oponentes. Age por empatia.
Interrompe a jogada ao perceber o colega contorcido de dor: é preciso acudi-lo. Sua régua de prioridades anda bem calibrada.
Caso pertencesse a um conto de fadas, o fair play do rapaz, tão inesperado quanto o recuo do leão numa arena romana, talvez ganhasse a recompensa de uma virada épica. Mas a discreta fidalguia mal recebe agradecimentos.
O lampejo altruísta acaba ofuscado pela pressa dominante. Pressa cega. Pressa em defender a vantagem. Pressa em destruí-la. Pressa em ganhar. Pressa, pressa, pressa.
O duelo retoma o curso pragmático. Costura a fenda moral aberta por Vitinho como se não passasse de uma miragem, de uma figuração invisível, uma migalha qualquer.
Os flashes, os gritos, a multidão aplaudem outro jovem habilidoso de 19 anos. O golaço de Kayke, esculpido aos 40 da segunda etapa, encaminha a 11ª Copa São Paulo de Futebol Júnior faturada pelo Corinthiana. E aproxima o atacante do heroísmo.
Uma dúzia de intermináveis minutos separam Kayke da consagração sonhada na véspera, quando nenhum participante de uma finalíssima prega o olho e todos se imaginam de taça na mão. Quando a ansiedade transborda insone.
A bomba decisiva faz de Kayke uma pipa sorridente. Alcança o céu numa miúda eternidade. Nela não pesa a tonelada de incertezas sobre o futuro de quem decide viver das chuteiras.
Kayke descola-se dos pés e dos pulmões cartesianamente empenhados em consumar a conquista. Flutua como a música que atravessa o intransponível. Flutua como todo menino deve flutuar. Flutua. As câmeras não enxergam.
Vitinho e Kayke evocam preciosos alentos. Convém valorizá-los.
Da finta ao chute na veia, o gol de Kayke exala o virtuosismo resiliente ao agreste político e gerencial. Moleques bons de bola brotam com a resistência milagrosa de um cactus que se impõe ao cáustico.
O estio de craques mitológicos, semideuseus imunes às leis da física, não resseca o frescor dos talentos colhidos que nem fruta da estação. Eles se renovam nos campinhos de terra, nas pracinhas, nas várzeas, nos condomínios, nos clubes.
Devolvê-lo ao encanto e aos títulos mundiais configura-se desafio tão inadiável quanto complexo. Exige uma coquetel de ajustes, desde o saneamento político-administrativo até o reencontro com a nossa identidade cultural refletida nos gramados.
Vitinho emite recado mais importante. Seu gesto fraterno constitui uma exaltação da vida, do outro, do amparo. Uma brisa à sobrevivência das humanidades e da humanidade.
Ambições particulares não devem atropelar o bem-comum, lembra a escolha espontânea do jovem Vitinho. Não é pouco diante da crise ética, do egoísmo endêmico, dos preconceitos viscerais e das brutalidades em série que nos assolam.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.