A história do Rio é a história dos seus seculares clubes de futebol. Há muito eles respiram costumes, contradições, aspirações pulsantes na ex-capital republicana. Assim ilustra a batalha entre os princípios amadores – ligados à linhagem aristocrática, disciplinadora, do esporte – e a profissionalização cortejada pela crescente popularidade. Travado nas três primeiras décadas do século passado, o duelo espelhava esgrimas classistas numa sociedade que se remodelava entre a modernização eurocentrista e o sonho de uma democratização racial capitaneada pela bola.
O processo escolta os relatos de Mário Filho em “O negro no futebol brasileiro”, cujas firulas romanceadas não arranham a riqueza historiográfica. Refletida nas esquinas e na reciclagem das etiquetas sociais ao longo de uma dúzia de décadas, a simbiose da cidade com as expressões tangíveis e intangíveis dos clubes de futebol desdobra-se em várias faces do tecido urbano.
Impossível dissociar, por exemplo, a vida suburbana, suas lendas, palpitações, transformações, de patrimônios como São Cristóvão, Bangu, Bonsucesso, Madureira, Olaria. Patrimônios que compartilham a cor do coração carioca, como o pavilhão do hino americano eternizado por Lamartine (embora o rubro da Tijuca tenha nascido alvinegro, em 1904).
Tamanho legado não é esquecido pela incansável arqueologia acadêmica e por frequentes registros literários e audiovisuais. Não se pode dizer o mesmo das jogadas gerenciais. O prolongado purgatório do América é emblemático.
Sete vezes campeão carioca, terceiro colocado no Brasileiro de 1986, dono da quinta maior torcida no Rio, o America Football Club (grafia oficial) amarga desde 2008 três rebaixamentos no Estadual. Passou sete dos últimos 12 anos na Série B local. Nela seguirá em 2021 se não superar os demais cinco times atrás da vaga à fase principal, a partir de 28 de fevereiro. O tombo revela-se tão drástico, tão surreal, quanto o exílio das competições nacionais derivado do rebaixamento à Segunda Divisão em 1986.
Quatro anos antes, o América conquistava o Torneio dos Campeões. A disputa reunia vencedores de campeonatos organizados pela Confederação Brasileira. Naquele 12 de junho de 1982, o Maracanã viu o escrete de Eloi e Moreno bater o Guarani de Jorge Mendonça, ainda sob embalo da conquista nacional de 1978. Gilson Gênio decidiu no segundo tempo da prorrogação: 2 a 1. O título chancelava a estatura entre os melhores do país.
Sucessivas barbeiragens administrativas trituraram a vitalidade esportiva, política e econômica do clube pelo qual torciam Noel Rosa, Villa-Lobos, Oscarito, Tim Maia, João Cabral de Melo Neto, entre outras figuras ilustres. De tanto amealhar simpatizantes, virou “o segundo time do torcedor carioca”. Um acolhimento singular, jamais aproveitado à altura como trunfo de mercado.
Com a receita atrofiada pela saída dos holofotes, o América enfrenta o círculo vicioso comum à maioria das cerca de 650 equipes profissionais no Brasil: o dinheiro escasso dificulta a formação de time competitivo e a ascensão a competições mais visíveis e rentosas, o que mantêm o dinheiro escasso. Uma vez instalada esta ciranda perversa, dela libertar-se é dureza em qualquer canto do planeta
A alforria envolve uma combinação de interesses e competências, desde a governança da associação ou empresa esportiva até convergências políticas internas e externas. O declínio americano não se deve exclusivamente a seguidas caneladas de dirigentes do clube. Nele também se encontram digitais das organizações reguladoras nos âmbitos estadual e nacional.
A solução é igualmente conjunta. Larga da consciência de que os dividendos materiais e simbólicos da difícil virada extrapolam o tradicional clube. Fora o acerto de contas com a História, a regeneração do América revigoraria o tônus de patrimônio sociocultural carioca.
A sonhada recuperação poderia inspirar uma guinada do futebol carioca, na contramão do sucateamento do Estadual. Integraria uma coordenação de esforços para oxigenar um campeonato asfixiado entre desacertos político-administrativos e o calendário frenético. Um campeonato ainda assim decalcado na memória e nas filiações afetivas com a cidade. Um campeonato cuja sobrevivência desafia a capacidade de torná-lo de novo tão atraente quanto as maravilhas do Rio. Mas aí são outros quinhentos…
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.