Anos 70. O garoto toca um terror. Tagarela, zoa os colegas, inferniza a sobriedade reinante. Tenta apressar as duas horas de catecismo, toda sexta, na escola.
A gota d’água seria o chiclete no assento vizinho. Nem a paciência divina do professor evitaria o que hoje chamamos de cancelamento.
“Infelizmente teremos de suspendê-lo. Ainda não está preparado”, diz o catequista à mãe chamada ao colégio. Fala mansa, lábia de advogada, a senhora consegue uma clemência provisória. O menino ganha um mês para se enquadrar, mostrar-se pronto à primeira comunhão.
Os trinta dias seguem milagrosamente mansos. A bronca dos pais adianta. Periga expirar quando avisam: o veredito sairá após a confraternização da catequese. Se tudo correr bem, o menino continuará com a turma rumo à eucaristia.
A garotada se encontra num sábado perfeito. Céu de brigadeiro, brisa de primavera, piquenique à sombra da mangueira, um jardim de brincadeiras. Sob medida para as crianças interagirem fora das liturgias pedagógicas.
Um grupo de desavisados ganha de súbito o campinho. Tinham combinado jogar bola ali. “Ei, nada disso, esse espaço está reservado”, veta um dos alunos do catecismo, à beira do par-ou-ímpar para a escolha dos times. “Mas a gente joga futebol aqui todo sábado”, argumenta o suposto invasor.
O impasse perdura até o garoto simplificar: “Por que não jogamos juntos? Se fizermos partidas de 20 minutos, todo mundo joga. Há tempo de sobra”. Com certa relutância, a proposta vinga. Desemboca em novas amizades.
Meio-dia, o piquenique chama. Quatro crianças descobrem-se sem lanche. O garoto não hesita. Divide os sanduíches, empadinhas e bolos preparados pela vó. “Há comida pra todos”, convida.
A tarde avança, meninas planejam um queimado. Esbarram no preconceito para formar as equipes. “Não levem a mal, mas é jogo de mulher”, argumenta um. “É chato”, desdenha outro. “Bobagem. Bora brincar”, convoca o tal garoto.
Lambuzado de pequenas grandes alegrias, o sábado termina numa revelação. Os catequistas haviam arquitetado os contratempos – na pelada, no piquenique, no queimado. A inclinação para resolvê-los mediria a correspondência prática dos ensinamentos cristãos.
Só o menino gabarita os testes. Logo ele, o terror da catequese. Na hora da verdade, o coração fraterno pulveriza as diabruras.
O episódio lembra um tanto a folclórica reprovação de Garrincha por um comitê encarregado de avaliar o ajuste dos pré-convocados para a Copa de 58 a padrões atléticos. Desassossego dos manuais biomecânicos, o craque estaria desenganado.
Para frear o absurdo, Nilton Santos e outros colegas de seleção apelam ao óbvio: Mané voa sobre a matemática, a física, a biomecânica. Suas asas o fazem inalcançável. Pelos adversários, pelos rigores táticos, pelas leis de Newton. Nenhum escrete poderia prescindir daquela alegre erupção de drible, gol, irreverência.
Sempre haverá um menino travesso ou um anjo torto a descascar a realidade, e revolver o sentido das coisas. Felizmente.
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A historinha do guri “despreparado” sublinha lição ancestral: fraternidade extrapola crenças, estatutos, estilos. Aplicá-la de forma indistinta constitui um desafio da condição humana.
Desafio ao qual nos confronta intensamente a pandemia. Reflete-se nos boicotes à vacinação e na desigualdade de acesso aos imunizantes.
Ponte para o fim do pesadelo, a vacina atesta empatia. A opção de recusá-la se dissolve na responsabilidade com a saúde comunitária.
Autoridades, personalidades, ídolos carregam o dever humanitário de incentivar a vacinação e contribuir para democratizá-la. Com palavras e, principalmente, gestos exemplares.
Casos como o do tenista Djokovic trilham a contramão. Fonte de sobressaltos diplomáticos, a requerida dispensa do imunizante no Aberto da Austrália sinaliza certa indiferença com o bem-comum e com a própria influência de ídolo global.
Camufladas de liberdade individual, iniciativas do tipo desapontam a hora da verdade. Naturalizam privilégios. Turvam a urgência da imunização irrestrita.
Às diretrizes científicas, soma-se o compromisso com o bem-estar coletivo. Está formalizado na Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, e nas Constituições dos países democráticos. Independe de pendores político-partidários, religiosos, ideológicos, econômicos.
Assegurá-lo é tarefa não só do poder público, como determinam as matrizes legais mundo afora, mas de todos. Na dúvida, basta uma breve consulta aos artigos 25º e 29º da Declaração dos Direitos Humanos:
“Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar (…)”.
“O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades, ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades do outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.
Nossa Constituição reforça: “Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas”. Sustenta-se com a “participação da comunidade” (artigos 196 e 198).
Os cuidados sanitários e a vacina evocam uma adesão conjunta. Impõem-se às individualidades. Assim clamam o Direito universal, os princípios humanitários, a sensatez. Assim praticam, com naturalidade inspiradora, os corações fraternos.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva.