Um cardápio de contrastes, urgências e utopias
Rio lideraria programa contra o sedentarismo e a desnutrição, impulsionada pelo avanço da insegurança alimentar e da obesidade
Ironia dos tempos, medalhões do agronegócio atacam de vestais ecológicas. Avistam o atropelo da boiada permissiva. A fumaça da Amazônia e do Pantanal lhes aguça o instinto de sobrevivência. O alerta ecoa numa parcela do recuo de 27% dos investimentos aqui aportados no primeiro semestre, em comparação com 2019.
Devassado pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), o avanço do desmatamento ilegal queima mais do que o filme brasileiro lá fora. Derrete confianças, transações, futuros. Eis um dos recados eloquentes das mutilações que ardem nossos biomas.
Esteio da economia nacional, o setor agropecuário responde por 21% do PIB, ou seja, de todas as riquezas produzidas no país. Internacionalizado na produção e no comércio, exportou aproximadamente meio trilhão de reais ano passado. Na contramão do tombo econômico, ensaia crescer 3% nesse 2020 devastado pela pandemia. Vem dos assaltos ao meio ambiente, não do coronavírus, o perigo de contaminação. Desprezá-los, em vez de buscar dirimi-los, confronta não só imagens de satélite e responsabilidades ambientais. Contraria também o pragmatismo dos negócios. Ameaça a governança e a credibilidade vitais aos investimentos.
A pujança agropecuária aloja-se num dos mais emblemáticos contrastes brasileiros. Somos o quarto produtor de alimentos do planeta. Somos 80 milhões entre o pouco e o nada à mesa. A “insegurança alimentar” assola 36,7% dos lares. Mais de 10 milhões de pessoas passam fome. Os números apresentados pelo IBGE na quinta passada remontam a 2018. Pavimentam a volta ao Mapa da Fome, do qual havíamos saído em 2004. O retrocesso impõe-se aos eufemismos, negacionismos, paliativos.
Criado pela ONU, o Mapa da Fome expõe a carestia severa. Agrupa países nos quais ao menos 5% das famílias sofrem com “insegurança alimentar grave”. Nada no horizonte sinaliza que o flagelo deixe de piorar por aqui.
A crise sanitária subtraiu quase 30% da renda dos mais pobres no segundo trimestre deste ano, estima o Centro de Pesquisas Sociais da FGV. O auxílio emergencial do governo conteve o ritmo da calamidade. Solucioná-la são outros quinhentos.
Uma combinação de fatores tende a intensificá-la, desde a redução no valor da ajuda federal – de R$ 600 para R$ 300 mensais nas quatro parcelas derradeiras – até a recessão que implode milhares de vagas de trabalho e engorda o desemprego (a taxa média deve beirar os 18% no fim do ano, projeta o Instituto Brasileiro de Economia da FGV). A corrosão da renda forma um par perverso com a inflação da cesta básica. Uma dupla especialmente voraz no andar de baixo.
O preço do leite subiu 22% em um ano. O feijão está 12% mais caro. O óleo de soja, 18%. Aos miseráveis, esses saltos configuram a diferença entre o distante e o inacessível, entre a resistência e a falência da vida.
O martírio se agrava com a dificuldade circunstancial do acesso à merenda. Única refeição diária de milhões de crianças, sua importância ultrapassa o subsídio nutricional necessário ao aprendizado. É um instrumento contra a evasão escolar. Um amparo a corpos, mentes, esperanças.
Para muitos, a merenda restitui parte da dignidade perdida. Um oásis no deserto sub-humano. Ao reencotrá-la, depois de uma eternidade sem o lanche, a menina de Vão das Almas, vilarejo nos grotões de Goiás, sorriu com os olhos. Um sorriso tão espontâneo quanto simbólico, redescoberto com a notícia de que a merenda acabara de chegar, trazida no lombo do burro por um tropeiro abnegado.
A imagem dos olhos da menina reacesos com a chegada da merenda é uma das joias dilacerantes da reportagem de Marcelo Canellas e Lúcio Alves, da TV Globo. Eles acompanharam, em 2009, o périplo da tropa de Zé Merenda até a choupana transformada em escola no Brasil esquecido, sem eletricidade, sem estrada, sem perspectiva. Atravessaram rios, matas, torrentes. Três dias cerrado adentro. Os perrengues sumiriam diante daquele sorriso. Assegurá-lo tornou-se ainda mais difícil nos quatro últimos anos, surrados por tormentas econômicas e políticas. O vírus acentuou a tragédia.
A falta iminente ou consumada de comida – insegurança alimentar, na linguagem técnica – produz efeitos variados, invariavelmente cruéis. No extremo, vem acompanhada de desespero, morte. Em níveis menos crassos, provoca sequelas nutricionais cujos impactos transitam do cansaço ao convite a doenças.
De quebra, a insegurança alimentar impulsiona a epidemia de obesidade em curso. Já atinge 21% da população brasileira, calcula o Ministério da Saúde. De cada cinco brasileiros, um é obeso: tem Índice de Massa Corporal (IMC) superior a 30.
Principal termômetro desse problema crescente, o IMC corresponde à divisão do peso pela altura ao quadrado. O resultado entre 25 e 29,9 indica sobrepeso, um estágio antes dos três graus de obesidade rastreados pela ciência.
Mais de 70 milhões de brasileiros encontram-se acima do peso ideal. Outros tantos logo se juntarão ao time. Assim aponta o crescimento do sedentarismo e do consumo de alimentos industrializados e de álcool durante a pandemia.
O aumento da obesidade relaciona-se, em parte, à expansão da insegurança alimentar. Parece contraditório, mas faz sentido. Ambas convergem para a desnutrição.
Muitas famílias carentes não necessariamente comem menos. Comem pior. A renda atrofiada e a ignorância as conduzem até o beco das alternativas menos nutritivas e mais calóricas. Trocam, por exemplo, o arroz integral pelo macarrão. Consomem grande quantidade de refrigerantes, biscoitos recheados, alimentos processados – campeões de sal, açúcar, gordura nociva. Distanciam-se do recomendado pela Organização Mundial da Saúde: alimentação equilibrada, harmonizando proteínas, carboidratos, vitaminas.
A escassez de nutrientes e o excesso de gordura deixam o organismo mais vulnerável a doenças, do infarto às infecções respiratórias. Como se não bastasse, esses riscos são potencializados por precariedades sanitárias: 35 milhões de brasileiros sobrevivem sem água tratada.
A obesidade estende o tapete para diabetes, hipertensão, depressão. À enorme lista de consequências desastrosas, somam-se as complicações da Covid-19. Perigos tão sorrateiros e destruidores quanto o danado do vírus.
O controle do peso e o equilíbrio alimentar compõem, ao lado da prática esportiva e do sono, o quarteto fantástico do bem-estar. Integram a estratégia mais simples e eficaz para prevenir doenças e controlar as principais ameaças à saúde.
Os ganhos materializam-se em melhor rendimento na vida social e sexual, na escola, no trabalho. Garantiriam também uma boa economia ao SUS. Nada mal para um país atolado na urgência de enxugar e melhorar os gastos públicos.
Tamanhos benefícios deveriam bastar ao desenvolvimento de uma política de Estado, com apoio da iniciativa privada e do Terceiro Setor, que contemplasse efetivamente a segurança alimentar, o controle do peso e a prática regular de esporte e atividade física. Uma política pública de longo prazo, pluriministerial, transpartidária,, capaz de conjugar a saúde física, ambiental e econômica.
O pacote incluiria desde, por exemplo, a revitalização dos programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) até incentivos para práticas esportivas comunitárias, adaptadas a particularidades locais. Compreenderia desde a recuperação dos mecanismos de proteção e fiscalização ambientais até a aditivação de políticas sociais, ajustadas a recalibragens fiscais. Envolveria desde a revisão da modulagem dos estoques reguladores até campanhas de alfabetização alimentar.
Nenhuma dessas ações e transformações caminharia num terreno macio. Quase todas são complexas. Implicam, mais do que remanejamentos orçamentários, um rearranjo na partitura socioeconômica, na dosagem liberal, nas visões de país e de mundo. Exigem, entre outros esforços, renegociações no tabuleiro agropecuário e reconfigurações urbanas. Uma cesta de utopias. Nela o Rio reencontraria o protagonismo sequestrado por sucessivas degradações financeiras e políticas.
Vocacionado cultural e geograficamente para o bem-estar, o Rio seria um piloto do plano nacional contra a desnutrição e o sedentarismo. Uma capital da saúde.
Em meio a impedimentos, desigualdades, roubalheiras e abandonos, salve o direito de sonhar alto.
_____________________________________________________________________________
Alexandre Carauta é jornalista e professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão, especialista em Administração Esportiva, graduado também em Educação Física.