Não aguento mais ouvir o nome daquela pessoa. Daquele ser repugnante, cretino, canalha, ditador e todos os adjetivos brilhantemente usados pela Mariliz Pereira Jorge em sua coluna publicada na Folha esta semana. Parece que não há outro assunto neste limbo chamado Brasil 2021. Pior é que, na real, não há mesmo nenhum outro assunto tão urgente no mundo quanto a falta de liderança do nosso governo em relação ao enfrentamento da pandemia. Somos pária internacional.
Mas vou tentar, por uns momentos, livrar você, caro leitor, deste pesadelo. Por isso vou falar das flores. “Pra não dizer que não falei das flores” é uma canção de Geraldo Vandré, conhecida também como “Caminhando”, composta no período da ditadura militar como resposta a opressão aos movimentos sociais e culturais. Quem acompanha minimamente o noticiário sabe que aquela pessoa, que eu não aguento mais ouvir o nome, criminaliza continuamente nosso segmento cultural, demoniza nossos artistas e faz chacota de manifestações populares genuinamente brasileiras.
Em momentos dramáticos como este que estamos vivendo, é inevitável não lembrar da célebre frase de Karl Marx, o filósofo alemão. A história se repete como tragédia ou farsa. Também hoje em 2021 artistas dos mais variados segmentos estão sendo censurados por parte da sociedade com o salvo conduto daquela aberração que ocupa o mais alto cargo público do país.
Nesta conjuntura, meu ofício de jornalista torna-se ainda mais essencial. Como jornalista especializada em música e apresentadora de um programa que é transmitido para mais de 400 cidades em todo Brasil, sinto-me obrigada a mostrar aos ouvintes (viciados com a pasteurização radiofônica que tomou conta do país nos últimos anos) que a música popular brasileira é formadora de opinião, educadora, capaz de promover mergulhos profundos em nossa cultura e nos desperta de anestesias coletivas.
O FARO faz parte de uma rede de programas espalhados em diversas emissoras de rádio por todo país que dissemina a atual produção nacional. Talvez o FARO seja o único a ocupar a programação de uma rede de rádios cuja audiência impacta mais de 3 milhões de ouvintes mensais. O FARO também está sozinho se considerarmos programas radiofônicos que promovem longas entrevistas com artistas da cena contemporânea no dial. Privar a população brasileira de ouvir músicas compostas por Criolo, Rico Dalasam, Emicida, Céu, Johnny Hooker, Linn da Quebrada, Rubel, Djonga, Aíla, Larissa Luz, Luedji Luna, André Mussalém, Siba, Tássia Reis, Rincon Sapiência, Otto, Lucas Santtana e tantos outros artistas que fortalecem a renovação da música brasileira é um atentado.
A primeira emissora de rádio no Brasil começou sua transmissão em 1923. Ao longo de seus quase 100 anos de história, o rádio cumpriu papéis diversos, atendeu a interesses variados, adaptou-se às mudanças dos tempos e hoje está presente em 88,1% dos domicílios com a impressionante marca de 200 milhões de aparelhos convencionais espalhados pelos lares país afora.
Entre os anos 20 e os 60 do século passado, o rádio foi o principal veículo de comunicação de massa do Brasil. Ainda hoje, nas camadas mais pobres da população, o rádio é o único acesso à notícia mediatizada. Sob este aspecto é um erro gravíssimo do sistema de radiodifusão do país empurrar a renovação da música brasileira para as plataformas digitais e achar que o “jovem” não ouve mais rádio por causa da popularização dos aplicativos de música. O Brasil não tem apenas um tipo de “jovem”. O jovem dos grandes centros não se parece em nada com o jovem rural. Talvez só o colágeno os una. O jovem dos grandes centros também gosta e precisa ser surpreendido por uma programação inovadora.
Aos 15 anos, quando ouvi “Refavela” de Gil no rádio do carro do meu pai, um mundo se abriu. Aos 29, quando ouvi “Não Existe Amor em SP” do Criolo por meio de um link para download enviado por email pela equipe do artista, eu percebi que ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais sendo educados pela música popular brasileira.
Os números expressivos nas plataformas digitais de artistas que começaram suas carreiras após a virada do milênio são um recorte temporal. Mas estes artistas não devem ser reduzidos – ou isolados – apenas ao meio digital. Eles precisam estar nas programações dos rádios, suas composições precisam visitar o Brasil profundo, seus versos precisam atravessar vias ondas radiofônicas pessoas desavisadas lavando louças.
A democratização da programação radiofônica é assunto urgente num país de tantas urgências. Precisamos ouvir Duda Beat, Cícero, Jéssica Caetano, Luana Flores, Julia Mestre, Juliana Linhares, Ciel, Jup do Bairro, As Baias, Tim Bernardes, Illy e inúmeras outras vozes nas escolas, nas ruas, campos e construções pelas ondas do rádio.
E pra não dizer que não falei de flores: Bolsonaro Genocida.