No Brasil não é todo preto que nasce preto. Eu, por exemplo, nasci branca apesar da pele marrom. Lá pelos meus 20 anos, já na faculdade, entendi que eu era “parda”. A negritude plena só veio quando eu já beirava os 40 anos. Hoje, aos 42, me autodeclaro para o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e para o mundo, negra. Num país racista como o Brasil, ser uma mulher preta de pele clara tem vantagens sociais. E eu me beneficiei disso por sobrevivência. Aqui, o racismo é estrutural e o colorismo – classificação social de seres humanos pela tonalidade de suas peles – é substrato do racismo. Mas no país da (pseudo) democracia racial, se conscientizar disso pode levar uma vida.
Faço essa pequena introdução para falar do impacto da arte de Dino D’Santiago na minha trajetória, porque gosto de “dar a César o que é de César”. Quando conheci a música de Dino, eu estava no início do meu letramento racial e, graças as coincidências da vida, morando em Lisboa por causa de um mestrado. É importante mencionar essa localização geográfica porque sendo brasileira, Portugal tem uma influência enorme na minha formação. Sou cria dos anos 80 e aprendi nos livros de escola que o colonizador era o mocinho e o negro, o grande vilão.
Mas as crias dos anos 80 também são os jovens que elegeram Lula em 2002. E a partir das ações afirmativas e políticas públicas implementadas pelos seus dois primeiros governos, milhares de pessoas como eu, que nasceram brancas, começaram a se reconhecer como negras. Pode parecer confuso para quem não vive no Brasil, mas o racismo é um dispositivo político tão bem articulado nas bandas de cá, que o patrimônio da cor é um ativo condicionador de trajetórias de vida.
Quando fui morar em Lisboa, em 2016, logo após o golpe sofrido pela presidenta Dilma Roussef, estava imersa em pesquisas sobre colorismo nos países lusófonos e decidida a conhecer mais e melhor minha ancestralidade. Sou jornalista por formação e desde que me formei na graduação trabalho com música brasileira. Aqui abro um parênteses. A música brasileira é aclamada e aplaudida em todo o mundo. Não se questiona, em lugar algum deste planeta, a qualidade sonora e a riqueza melódica do nosso maior patrimônio cultural. Mais do que entreter, a música brasileira no Brasil educa, informa, estreita distâncias, unifica narrativas em um país de dimensões continentais e ajuda na construção de pensamentos. No bom português, “forma opiniões”. Fecha parênteses.
A música, pra mim, é objeto de pesquisa. E morando em Portugal, quis pesquisar as sonoridades contemporâneas produzidas no país. Quis entender o “agora sonoro na terrinha”. Lisboa é, sem dúvida alguma, a capital da música lusófona. E apesar de ser brasileira e ter a absoluta compreensão da diversidade rítmica, da qualidade harmônica inquestionável – e acima da média – da nossa música, afirmo que a mistura lusófona produzida hoje pelo encontro de diversos artistas em Lisboa é única, rica e uma preciosidade.
Nessa busca pela música lusófona produzida em Portugal pós virada do milênio, conheci artistas extraordinários como Pedro Abrunhosa, Mayra Andrade, Salvador Sobral, Capicua, Selma Uamasse, Carolina Deslandes e muitos outros. Alguns deles podem ser vistos na websérie que criei pro meu canal no Youtube.
Cada um desses nomes lapidou meu olhar e expandiu meus horizontes. Mas a música e a narrativa de Dino D’Santiago abriram um portal, sem precedentes, na minha compreensão de estar e de me impor como corpo diaspórico neste mundo. A arte de Dino, e tudo que orbita em torno dela, reafirma o elo intrínseco da missão artística. Sua assinatura sonora atravessa outros segmentos rítmicos, artísticos e geográficos com a clara intenção de refletir sobre sua própria identidade mas sem deixar de lado as “regras do jogo do mercado fonográfico”. Dino sabe que precisa “estar no game para mudar o game” e faz isso com muita sabedoria.
Português com ascendência caboverdiana, Dino se coloca como corpo negro viajante e entre suas inúmeras travessias, ele tem sobrevoado com frequência o oceano Atlântico para pisar no mesmo solo onde há 523 anos, seus ancestrais também pisaram – contra vontade num dos mais cruéis regime de trabalho forçado da história. Artista premiado, consolidado e consagrado em Portugal (e em muitos outros países europeus e africanos), Dino sabe que o Brasil é um território importante a ser conquistado. E ao contrário de outrora, essa conquista não vem na base da imposição. Dino é estratégico, tem consciência que seu discurso é embasado e que o Brasil de 2023 – graças a consolidação das políticas afirmativas implementadas há duas décadas por Lula, reeleito para o 3º mandato no ano passado – está propenso a escutá-lo.
Apesar das apresentações por aqui ainda serem discretas, Dino parece mapear muito bem os espaços que escolhe frequentar. Recentemente, participou de um feat com Emicida, um dos mais importantes artistas brasileiros contemporâneos. Maria é uma parceria de Dino, Emicida, Nosa Apollo, Seiji e Kalaf Epalanga e pode ser ouvida em todas as plataformas de streaming de áudio.
No início de setembro, Dino esteve no Brasil para participar da abertura da Bienal Internacional de Artes de São Paulo e também para se apresentar num evento promovido pelo músico e escritor Kalaf Epalanga, um de seus parceiros no feat com o rapper paulistano. O evento, uma experiência imersiva, fazia parte da programação do Kizomba Design Museum. Dino fez um pocket show numa Casa de Francisca abarrotada de gente interessada em conhecer a história da cultura kizomba. A noite contou com outras participações mas vou me concentrar no show impecável de Dino.
No palco acompanhado apenas de um DJ, que soltava as bases de suas músicas, o artista hipnotizou uma plateia de centenas de pessoas com uma apresentação de 50 minutos. Com letras assertivas, Dino passa o recado. Mas muito consciente que esse recado precisa chegar a todos, o artista é um mestre na arte de juntar palavras. Com versos que celebram a cultura kizomba – que em kimbundu, uma língua bantu do norte de Angola, significa festa ou celebração -, Dino se inspira na tradição da música brasileira para também educar, informar e diminuir as distâncias geográficas. Com completa maestria e dominando as ferramentas que o mercado fonográfico tanto preza, Dino envolve a todos com seu gozo e sua dor, sentimentos que o humaniza e nos aproxima. Longe do clichê romântico, seus versos que promovem o ato de amar ganha ares de reparação histórica, uma vez que corpos negros tiveram essa experiência negada inúmeras vezes ao longo da história.
Assistir a uma apresentação de Dino nos dá senso de pertencimento. Ajuda-nos a assumir que também somos África e que África está muito além dos estereótipos perpetuados, há séculos, no Brasil. A arte de Dino não é “só” a música. A arte de Dino está em sua capacidade ímpar de reunir ritmos, narrativas e estratégias de mercado para hackear o sistema e mudar o game.
Quem sai ganhando somos nós, filhos da diáspora.