A epidemia do novo coronavírus está nos trazendo uma série de desafios diários. Por isso tenho a honra de convidar o Prof. Dr .Mario Fritsch Neves, um profissional, que está desde o inicio da pandemia, trabalhando diariamente na linha de frente e enfrentando esta “nova” realidade vigente. O Professor Mario é o Professor Titular de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ, Pesquisador nível 1 do CNPq, atual Diretor da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, instituição que vem se destacando nos testes diagnósticos e tratamento hospitalar da COVID-19 através da atuação dos seus alunos, residentes, médicos e professores.
Mario, quem devemos priorizar na vacinação contra o novo coronavírus?
Prof. Dr .Mario Fritsch Neves: De uma forma geral, do ponto de vista de saúde individual e coletiva, o objetivo primário de qualquer vacinação é diminuir a ocorrência de casos graves da doença e, consequentemente, a mortalidade relacionada à doença. Obviamente, a vacinação também visa impedir o adoecimento e a transmissão da doença, até mesmo para aqueles que não foram vacinados por qualquer motivo. No mundo ideal, não haveria escassez de doses e, assim, todos poderiam ser vacinados em pouco tempo, sem necessidade de preocupação com critérios de prioridade. Como estamos longe do mundo ideal, com a pandemia ainda em plena atividade e aquisição de vacina insuficiente para o tamanho da nossa população, os critérios de prioridade se tornam mais importantes. Para isso, devemos procurar identificar as populações de maiores riscos, de acordo com o cenário epidemiológico da doença. Assim, podemos dizer que os idosos e os profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia seriam os dois principais grupos de maior risco. Os idosos por terem menor proteção imunológica que se reduz com o avançar da idade e os profissionais de saúde pela maior exposição à doença e contato com maior carga viral. Essa definição pode parecer simples e óbvia no papel, mas na prática há muitas dificuldades. Primeiro porque no Brasil ainda não há doses suficientes nem para contemplar esses grupos. Então, muitos locais precisaram fazer uma lista de prioridades dentro das priorizações da primeira fase. Além disso, dentro de cada grupo existem algumas dúvidas.
Entre os idosos, seria mais prioritária a vacinação de um indivíduo de 65 anos que está trabalhando ativamente ou de um aposentado de 85 anos que está em casa há 9 meses? Há argumentos para um (maior exposição) e para outro (maior susceptibilidade). Entre os profissionais de saúde, as dúvidas são maiores. Na verdade, o termo correto é “trabalhadores de saúde”, pois alguns não têm formação na área de saúde, mas trabalham diretamente em unidades fechadas com pacientes com COVID-19. Como exemplo, os auxiliares de limpeza, maqueiros e agentes de segurança. Para serem considerados como prioritários, os trabalhadores de saúde precisam estar na “linha de frente”. Mais uma vez, podem surgir diferentes interpretações, pelo menos na atenção terciária que incluem os hospitais.
No Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ, por exemplo, algumas áreas foram reservadas como Enfermarias COVID (para pacientes menos graves) e CTI COVID (para pacientes mais graves). Nestes locais, não há qualquer dúvida que todos os trabalhadores de saúde devem ser vacinados prioritariamente. Todavia, o hospital possuiu outras unidades de terapia intensiva e de enfermarias não preparadas para isso, mas que frequentemente identificam a COVID-19 em pacientes internados, caracterizando uma exposição quase constante ao coronavírus. Assim, de fato e de direito, todos os trabalhadores de saúde que atuam no hospital de referência, incluindo residentes e internos (alunos do último ano) deveriam ser vacinados antes de progredir o plano de imunização para a próxima fase. Não somente por reconhecimento dos seus trabalhos durante todo o ano de 2020, mas principalmente como necessidade de proteger aqueles com maior chance de contágio, que podem, inclusive, transmitir o vírus para seus familiares e contatantes em ambiente extrahospitalar. Esse desequilíbrio no processo de vacinação tem gerado muita instabilidade dentro dos cenários de assistência do hospital, resultando em frustrações e intensas manifestações dos servidores não vacinados. O tempo é curto, ainda estamos terminando o primeiro mês de vacinação, todos têm suas razões, só não há como atender se não há vacinas, se a distribuição não for adequada e se o hospital não tiver autonomia para seu planejamento interno. Por fim, devemos também considerar os trabalhadores daqueles serviços que foram considerados essenciais durante a pandemia, como transporte público, limpeza urbana, mercados e farmácias. Neste caso, alguns grupos menores apresentam suas reivindicações, trazendo maior complexidade e dificuldade no controle. Se houvesse doses suficientes e a velocidade de vacinação fosse rápida, essa discussão seria desnecessária, pois a diferença entre um grupo e outro seria de poucos dias. Sem falar agora no reinício das aulas presenciais que já está gerando uma busca pela ampliação das prioridades. Só não podemos considerar o ensino como não prioritário, enquanto shoppings, bares e restaurantes ficam abertos com aglomerações não essenciais.
Dr. Fabiano M. Serfaty: O governo do Estado, o Município e a Universidade têm o mesmo plano de prioridades?
Prof. Dr .Mario Fritsch Neves: Existe um Plano Nacional de Imunização que deveria orientar Estados e Municípios no processo de vacinação contra COVID-19, um trabalho detalhado, produzido por especialistas. Como nosso país é muito extenso com grande heterogeneidade entre as diversas cidades, muitas Prefeituras elaboraram seus próprios Planos de Imunização. E é neste ponto que surgiram algumas diferenças, às vezes até entre cidades vizinhas como Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo. Estas diferenças também serviram para demonstrar que houve algum erro na distribuição das doses, pelo menos na previsão. Alguns profissionais de saúde do Rio chegaram a procurar vacinação nas cidades vizinhas ao serem noticiados que havia sobras de vacinas nestes locais. Como a vacinação é um processo ligado à atenção primária à saúde, de uma forma geral, as Universidades não têm planos de prioridades, pois a vacinação segue os Planos de Imunização das Secretarias Municipais de Saúde (SMS). Por outro lado, como a primeira fase engloba os profissionais de saúde na linha de frente, os complexos de saúde universitários tiveram que definir internamente suas estratégias, mas sempre seguindo as determinações da SMS. Nesta situação é que se demonstraram outras diferenças, pois o quantitativo de doses não foi o mesmo para os hospitais universitários de diferentes cidades e até na mesma cidade. Logicamente, a distribuição depende do tamanho do hospital e do número de leitos destinados ao tratamento da COVID-19. Mesmo com essas considerações, houve desproporções que não foram explicadas.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Como você prevê os próximos meses?
Prof. Dr .Mario Fritsch Neves: Ainda teremos muitas oscilações das taxas epidemiológicas nos primeiros meses do ano, como consequência das festas de fim de ano e período de férias que envolvem aglomerações. Isso demonstra o componente comportamental da humanidade na pandemia, quesito que foi reprovado não só no Brasil, mas em todo o mundo. Mas vejo os próximos meses, no segundo semestre do ano, com mais otimismo. Acredito que já ficou claro para o Governo Federal a necessidade de imunização em massa para a retomada do crescimento econômico no nosso país. Notam-se maiores esforços para aquisição de um volume maior de doses das vacinas já aprovadas e para aprovação de novas vacinas. Com isso, poderemos demonstrar uma queda acentuada do número de novos casos e de mortes por COVID-19, como já relatado em Israel, o primeiro país que imunizou o grande percentual de sua população. Por outro lado, a pandemia não será erradicada neste ano. Mesmo com menores taxas de contaminação, o vírus ainda estará circulante entre nós, infectando aqueles que não tiveram a chance de receber a vacina ou aqueles que optarem pela não vacinação. Vale lembrar que algumas vacinas impedem mais a forma grave de doença, mas não propiciam 100% de proteção para os casos mais leves. Adicionalmente, há a preocupação com as variantes do coronavírus, inclusive já identificadas no Brasil. Isto tudo indica que toda a população ainda precisará fazer sua parte, mantendo as medidas de prevenção já conhecidas, especialmente manter o uso de máscaras em ambientes públicos, evitar aglomerações e lavagem frequente das mãos.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Você acha que novas vacinas serão liberadas ainda neste ano pela ANVISA?
Prof. Dr .Mario Fritsch Neves: Acredito que sim. De fato, novas vacinas já estão em processo de avaliação pela ANVISA para aprovação de uso no país. Como o Ministério da Saúde não optou pela aquisição de um grande número de doses de uma única vacina, como fez o Governo dos Estados Unidos, a solução imediata para o nosso caso será diversificar e atingir o número total necessário com a utilização de vacinas de diversas origens e diferentes métodos de produção. A diversificação com vacinas produzidas com métodos antigênicos variados não representa uma preocupação de curto prazo, pois todas as aprovadas foram capazes de induzir a formação de anticorpos e prevenir uma evolução de maior gravidade. O mais importante é que a segunda dose, necessária em todas as vacinas aprovadas no Brasil até o momento, deve ser feita com o mesmo tipo daquela aplicada na primeira dose e no tempo adequadamente indicado. Devemos reconhecer que a ANVISA tem trabalhado intensamente nos últimos meses com os diversos processos para aprovação de vacinas, o que sempre é acompanhado de um enorme volume de documentos, levando a dias inteiros de trabalho sem interrupções. E qualquer descuido pode ser extremamente crítico. Como os estudos com vacinas foram realizados no tempo mínimo necessário, todos os dados disponíveis agora são extremamente relevantes para uma conclusão mais definitiva sobre as eficácias e seguranças das vacinas.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Você acha que as novas variantes podem atrapalhar o nosso plano de vacina?
Prof. Dr .Mario Fritsch Neves: A COVID-19 é uma doença que surgiu há pouco tempo no nosso planeta, pouco mais de um ano, e ainda com mecanismos patogênicos a serem mais esclarecidos. Na verdade, nunca se aprendeu tanto sobre uma doença em tão pouco tempo. Já sabemos que é uma doença inflamatória sistêmica que pode desencadear mecanismos autoimunes, interferir no sistema de coagulação, e assim envolver todos os órgãos do nosso corpo, com diferentes gravidades. Por outro lado, ainda não temos certeza sobre vários aspectos da infecção pelo novo coronavírus e da doença COVID- 19. Por que muitos idosos, alguns até com doenças crônicas, têm boa evolução (felizmente!)? Por que alguns jovens, sem qualquer fator de risco, infelizmente evoluem de forma muito grave? Pesquisadores do mundo todo se voltaram para um único agente infeccioso em 2020. Graças a esses esforços, tivemos um recorde de tempo curto no desenvolvimento da vacina contra o Sars-Cov-2. Aliás, diversas vacinas. Agora há o relato das variantes no Reino Unido, África do Sul e
Manaus. Esta é uma ocorrência já esperada. A principal consequência epidemiológica constatada até o momento é a maior transmissibilidade. Os vírus sofrem mutações, pois é uma forma de conseguir sua própria sobrevivência. Este é o motivo pelo qual algumas imunizações são necessárias de serem aplicadas todo ano, pois são vacinas adaptadas para as mutações encontradas. Os coronavírus já são conhecidos de longa data pelos pesquisadores e suas mutações são também previstas. Esta constatação não atrapalha o plano de vacinação. Pelo contrário, indica que devemos acelerar as imunizações em todas as regiões, pois quanto mais tempo o vírus ficar circulando, maior a chance de surgir novas variantes. Embora existam especulações sobre a maior eficácia de alguns tipos de vacinas sobre as primeiras variantes, ainda não existem evidências clínicas convincentes em relação a isso. O que existe é muita ansiedade em obter respostas que somente surgirão com o tempo e com estudos mais avançados.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais os futuros planos da Universidade que podem ajudar a população nesta epidemia?
Prof. Dr .Mario Fritsch Neves: Esta pandemia vem trazendo algumas lições importantes, de vida inclusive. Tenho uma percepção de que a COVID-19, de uma maneira global, vem causando uma certa hipertrofia dos pontos fracos e fortes das pessoas e das instituições. Aqueles que já eram solidários, preocupados com o próximo, ampliaram suas ações de solidariedade e tiveram atitudes mais amigas e se colocando à disposição para ajudar no que fosse possível. Por outro lado, alguns que já tinham comportamentos egocêntricos e antiéticos, não tiveram constrangimento em, por exemplo, “furar a fila” da vacinação prioritária ou não se preocuparam com as recomendações de proteção, pois não enxergavam o risco para as pessoas ao seu lado ou até mesmo dentro de casa. Da mesma forma, as características das instituições políticas, sociais e universitárias se mostraram mais evidentes.
A pandemia demonstrou a grande importância dos profissionais de saúde, até mesmo para a estabilidade econômica de uma população, e a necessidade de maior investimento na ciência e na pesquisa. Se houvesse essa visão nas últimas décadas, teríamos enfrentado esta pandemia com mais qualidade e teríamos melhores taxas para serem apresentadas. Possuímos pesquisadores altamente qualificados e instituições bem preparadas para a pesquisa e para produção de vacinas. Teríamos condições de estar autossuficientes para o número de doses suficientes para nossa população e ainda capazes de exportar para outros países. Precisamos aprender mais rápido com nossos erros. Já temos um dos maiores sistemas públicos de saúde e vacinação sempre foi um dos pontos fortes do nosso sistema. Não há dúvidas que temos muito para melhorar, mas já temos um bom ponto de partida, uma estrutura montada com necessidades de ajustes e investimentos.
As Universidades têm um papel fundamental nessa estrutura. Na área de graduação, precisa continuar a sua missão de formar novos profissionais de saúde, saindo bem preparados e qualificados para atuar no Sistema Único de Saúde desde o início de suas carreiras. Na pós-graduação, as Universidades contribuem de forma clara na produção de ciência aplicada e na formação de novos pesquisadores. O Brasil vem aumentando progressivamente a quantidade e a qualidade da produção científica, avaliada através de indicadores referentes a artigos publicados em periódicos indexados. Além dessas grandes contribuições, a UERJ, como bom exemplo, disponibilizou seu Complexo de Saúde para o enfrentamento da pandemia. A Policlínica Piquet Carneiro foi a instituição que mais fez testes para COVID-19 no Brasil e o Hospital Universitário Pedro Ernesto reservou mais da metade dos seus leitos para receber pacientes com a doença, encaminhados pelo sistema de regulação do Estado. Mais recentemente, a UERJ ofereceu a grande área de estacionamento do seu Campus Maracanã para a vacinação dos idosos de acordo com o Plano de Imunização da SMS do Rio de Janeiro, o que foi muito bem organizado pela Faculdade de Enfermagem e executados por seus professores, residentes e internos, além do grande apoio dos alunos das Faculdade de Medicina, Odontologia e Nutrição.
Em resumo, um bom exemplo de como as Universidades podem atuar nesse período de pandemia, formando recursos humanos qualificados, atuando na assistência através das Unidades de Saúde, oferecendo seus laboratórios de pesquisa, desenvolvendo produção científica e oferecendo espaços e equipes preparadas para acelerar o processo de imunização da população.