Passei os últimos dias no Festival de Inverno de Garanhuns. Garanhuns é a cidade de Luís Inácio, o homem que liderou o país durante oito anos sob índices recordes de popularidade. Localizada no sertão de Pernambuco, Garanhuns representa o que os pensadores contemporâneos da sociedade civil chamam de “Brasil profundo”.
“Brasil profundo” pode se tornar uma expressão vazia se usada corriqueiramente. Pior, pode se tornar uma expressão excludente sem contextualização. Não tenho embasamento, ou como diria meu pai “conhecimento de causa”, para falar dos diversos “lugares de fala” que estão sendo reivindicados – com séculos de atraso mas enfim reivindicados -, mas é de conhecimento de todos que parte essencial dos movimentos socialmente progressistas hoje em dia está focada na questão da REPRESENTATIVIDADE. E por quê? Porque só a REPRESENTATIVIDADE é capaz de ampliar o debate público e consequentemente redirecionar as pautas do legislativo.
Garanhuns, Brasil profundo e representatividade foram minha santíssima trindade nos últimos dias. Uns preferem rezar o terço, outros se conectam com Deus ao ver uma apresentação do Coco de Umbigada comandado por Beth de Oxum, uma ‘artivista’ fundamental na perspectiva de continuidade da ação de valorização, difusão e preservação da memória do Coco. Ora sou uns, ora sou outros. E isso deveria ser a regra.
Há diversas maneiras de se promover a representatividade. Uma boa googlada pode lhe apresentar alguns caminhos mas do meu “lugar de fala” enquanto profissional da área de cultura, arrisco dizer que só a arte em suas mais variadas manifestações é capaz de propiciar uma experiência sensorial que abrange a compreensão e a desassociação dos valores pessoais em prol do coletivo. Por isso, só a arte nos salvará deste Brasil que caminha em direção ao retrocesso e ao conservadorismo, aplaude “opiniões” disfarçadas de discursos de ódio e legitima a narrativa unilateral da grande mídia.
Em defesa das minorias e buscando maior ocupação de espaços historicamente dominados por homens brancos, cisgênero, heterossexuais, ricos e elitistas, os movimentos sociais apoiam toda e qualquer iniciativa de diversificação. Mas não se pode esquecer que “os movimentos somos nozes”, logo, cabe a todos nós lutarmos pela amplificação da pluralidade. Não é benéfico pra ninguém – indivíduo e sociedade – uma população orientada pelos mesmos valores. A isso chamamos de manada e ela, segundo o Aurélio, não se aplica a homens.
Contrariando toda esta onda sufocante que vem crescendo rapidamente desde que o morador mais ilustre de Garanhuns, o Luís Inácio, deixou seu cargo, artistas, jornalistas, formadores de opinião, gestores públicos e privados têm se posicionado, numa guerra quase perdida, em todas as esferas: no palco, na imprensa, nas empresas, nos editais, nas ações afirmativas e em diversos cenários. As narrativas são inúmeras mas há um consenso: é preciso barrar o retrocesso antes que voltemos aos índices feudais. E pra quem acha esta afirmação uma hipérbole, basta dizer que o Brasil passou a ocupar nos últimos 15 meses a segunda pior posição em um estudo sobre mobilidade social feito pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com dados de 30 países.
Mas enquanto eu aplaudia Filipe Catto, uma das atrações do FIG, vestido com uma camiseta que estampava a imagem de Jesus Cristo no centro de um arco-íris, ilustrando explicitamente os versos bíblicos “amar ao próximo como a ti mesmo” – sem qualquer condicionalidade -, inúmeras pessoas estavam preparando o maior ato em defesa de um preso político na cidade do Rio de Janeiro. E isso é oxigênio.
No momento que Gaby Amarantos, cantora, apresentadora e voz fundamental na amplificação do movimento negro subia no Palco Dominguinhos, absoluta e ao lado de uma banda formada só por instrumentistAs, para levar sua música a milhares de pessoas que lotavam a praça central da cidade de Luís Inácio, outras milhares de mulheres espalhadas Brasil afora pediam o fim da violência contra as brasileiras negras numa ação da ONU Mulheres já que aqui, no país mais negro do mundo fora do continente africano, sete em cada dez mulheres vítimas de assassinato são afrodescendentes. Isso me dá fôlego.
Talvez não seja tão evidente para o grande público mas pra quem trabalha na área é explícito a existência de uma classe que domina a produção cultural no Brasil e a maioria esmagadora dessa classe, veja só, se utiliza do poder dominador da cultura para se representar “bem” frente aos olhos do povo. Por saber disso, vibrei intensamente ao ver uma cantora como Daniela Mercury, desde sempre inserida no mainstream cultural do país, verbalizar no mesmo palco que Gaby – em dias diferentes – seu profundo incômodo sobre a incompreensão do papel da arte por parte de lideranças que têm o poder da caneta. Reescrevo aqui parte da fala de Daniela e faço de suas palavras, as minhas. “Arte não tem dogma, arte é reflexão sobre nós, é liberdade, arte é pra incomodar, é pra fazer sentir, é pra libertar a cabeça. Censurar arte é uma ignorância. A nossa constituição não é a bíblia.”
Num país como o nosso, onde se controla “até e inclusive” a cultura popular, fica claro que a presença diversificada numa curadoria e numa gestão pública ou privada ajuda SIM na mudança de realidade, pauta SIM o debate público e amplia SIM o consumo de novos “produtos”. A normalização cultural de ver protagonistas que representem estas “minorias” (atentem-se pras aspas porque até eu, que fiz humanas, sei que essas minorias sempre foram maioria) faz bem pra todo um ecossistema que deve começar e terminar no povo. Já passou da hora de praticarmos a equidade.
Por fim e assumindo que este último parágrafo não dialoga com o texto embora tenha tudo a ver, eu moro numa cidade que vive aos berros. O meu Rio grita Fora Temer. Vaza Crivela. Marielle vive. Fascitas, machistas e racistas não passarão. Meu corpo minhas regras. E, Lula Livre.
Gil e Caetano, que privilégio ser contemporânea de vocês!
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Agradecimentos especiais ao André Brasileiro, coordenador geral do Festival de Inverno de Garanhuns e Gerente de Equipamentos Culturais da FundarPE; Andreza Portella, Coordenadora de Música da SeCult; Heloísa Aidar e Priscila Melo, curadoras e coordenadoras da Plataforma FIG e as 80 mil pessoas que lotaram a Lapa no último sábado.
É um privilégio trabalhar com cultura neste país. Mas é um privilégio ainda maior estar cercada de gente que não me deixa esquecer que política tem lado e que o muro nunca foi o meu lugar.