Um dia depois do assassinato da vereadora Marielle Franco, em quem votei, e do motorista Anderson Gomes, acordei com aquele peso na alma, um desespero pela minha cidade, pelo país, pelos meus filhos. Sem cabeça para tocar a vida, me mandei para a Cinelândia, era hora do almoço, e fiquei ali, em meio à multidão em choque, esperando os caixões chegarem à Câmara.
As escadarias estavam tomadas por mulheres militantes, protegidas por um cordão de isolamento. O coro de bacantes repetia com os punhos em riste, como num grito de guerra: “Mulheres Negras Existem! Mulheres Negras Existem!”.
Os féretros foram carregados sob aplausos, uma cena consternadora, uma impotência terrível, uma falta de saída que não tem limite. No final, enquanto me retirava em meio à turba, dei com uma carioca tão perdida quanto eu. Estranhas, nós nos abraçamos, era o que tinha para fazer, chorar e se apoiar.
A tragédia fluminense levou décadas para ser engendrada. Do populismo de palanque, que usou o Rio de trampolim de oposição para chegar ao Planalto, ao inchaço da máquina pública; dos feudos dominados pelo poder paralelo à corrupção de políticos e empresários; da falta de saneamento, educação e saúde à falência do estado; dos votos que demos a Moreira e Garotinho aos que confiamos a Sérgio Cabral, Pezão e Crivella; do jogo do bicho ao narcotráfico; do três oitão ao fuzil. Foram anos com o pé metido no acelerador, até bater de encontro ao muro.
Talvez não seja mais possível desarmar a bomba. Toda a cidade está organizada numa informalidade bandida, mortífera. As milícias garantem segurança, transporte, luz, gás e sinal de televisão, enquanto o tráfico gera emprego e move a economia. Juntos, eles ditam a ordem, a lei e a justiça.
Acabou a era do Charles 45, o mito do senhor do morro que garante a paz, o arreglo, o baile e decide as querelas com poder de Salomão. A paz miliciana também virou história. Não existe mais nenhuma relação de pertencimento entre o crime e o território conquistado. A população se esgueira entre mil corredores poloneses, com tiro para todo lado.
O terror da ditadura seguia as regras de um comando brutal, mas único. Havia um projeto de país, equivocado ou não, nos generais. Hoje, vivemos sob o pânico dos xerifados. Cada boca de fumo tem o acerto com a delegacia próxima, cada miliciano garante o gato e fecha as contas com o quarteirão.
Não é apenas um problema de segurança, é do tecido social. Não é só a falta de escola, de creche e hospital que preocupa, mas a malha de comércio e serviços, governada pela maracutaia paralela e oficial.
Marielle Franco não militou pelo crime, como afirmam as fake news hediondas. Os que tomaram as ruas, indignados com o seu assassinato, não são indiferentes à morte de pais de família, crianças e policiais. A execução da vereadora choca por se tratar de um ato terrorista, que ameaça tanto os liberais, que se identificam com valores ditos de direita, quanto aqueles que cultivam ideais de esquerda.
Em vez de nos agredirmos mutuamente, deveríamos é nos unir contra a barbárie.