Sou do tempo em que não se brincava Carnaval nas ruas do Rio de Janeiro. A minha percepção de moça era de que a ditadura militar, tão reativa às manifestações populares e às aglutinações públicas, era a culpada pelo fenômeno. Não sei. O fato é que a cidade passou um longo período muda. Fora a Sapucaí e a Rio Branco, as opções a portas fechadas eram bailes de clube e orgias romanas.
O Cacique de Ramos, o Bola Preta e a Banda de Ipanema faziam parte da resistência.
Meu espírito de foliã desabrochou tarde, em um esplendoroso Carnaval em Salvador. A velha sociofobia se rendeu aos shows peripatéticos. Na Bahia, não se ouve somente música de Carnaval. É claro que existem o axé e os refrões irresistíveis, como o da água mineral, mas ver Carlinhos Brown reger a Timbalada no Guarani, interpretar Zé Ramalho, Gil atacar o repertório de Londres e Baby e os seus, em uma peregrinação de um dia inteiro, fazerem uma retrospectiva histórica da carreira da diva foram grandes surpresas do Baco à baiana.
E mais Ivete, Ben Jor, Marisa, Caetano, o Gandhi, o Ilê e os Apaches. Imperdível.
Os fracos, que têm por costume voltar para casa antes das 10 do dia seguinte, acordavam para descobrir que haviam partido no momento culminante da festa. A grande ameaça do Carnaval soteropolitano é o sono.
Na época, o Rio era um deserto. Tímidos blocos arriscavam sair, mortos-vivos de Michael Jackson, morrendo à míngua nas vielas vazias. Havíamos perdido o rumo.
Hoje, o Bola Preta bateu o Galo da Madrugada, do Recife, em número de foliões e Preta Gil teve de ser transferida para o Centro. A profusão de adeptos tumultua a orla e faz xixi nos canteiros. O prefeito Eduardo Paes, amante da folia, enfrenta os dilemas da organização. No meio da semana, um cortejo saiu sem autorização e engastalhou o tráfego de Botafogo. A guarda entrou em contato com a prefeitura: reprime ou não reprime? O prefeito mandou seguir. Ia fazer o quê? Botar todo mundo em cana?
O Carnaval carioca guarda o tom do improviso. Em Salvador, comandos de quatro soldados baixam o cacete de maneira cirúrgica para garantir paz na procissão de eufóricos. O Rio é amador.
Os blocos cariocas soam canhestros aos ouvidos do meu amigo baiano, o violonista e compositor Cézar Mendes. Salvo exceções, e ele deu como exemplo os naipes dos metais da Banda de Ipanema, Cézar constata que na Bahia, ao contrário do Rio, os músicos são profissionais. Virtuoses, diz ele. E se escuta bem mesmo longe das caixas. Aqui, quem vem no rabo da bagunça mal entende o que se canta na frente, em um agudo estourado, como uma buzina estridente.
A observação me fez pensar que, talvez, a motivação primeira do Carnaval do Rio não seja a música. O Simpatia, o Que M. é Essa?, o Me Beija que Eu Sou Cineasta são como o Baixo Gávea, a Guanabara e a Lapa, salões ambulantes, fiéis à tradição do chope e do filé- aperitivo. Entendi, ouvindo a crítica do baiano, que o que puxa a parada no Rio é a boemia.
Carioca tem horror a visita, mas gasta as horas perambulando pelos bares e calçadas. A cidade é a sala, habemus esquinas. É a esse caráter que devemos a volta do Carnaval.
O renascimento passa por um instante glorioso. Os blocos cresceram, mas ainda não viraram um negócio. Em dez anos, o Monobloco fechará o Aterro e a guerra ambiental dos jardins da orla contra os Napoleões de Boulevard provocará a proliferação desenfreada da iúca, planta dura em formato de agulha capaz de cegar o incauto. Tapumes de madeira farão um curral do percurso e o abadá, tomara que não, será permitido.
Venha o que vier, espero que a informalidade resista. Espero, também, que, além dos botequins, a paixão pelas churrascarias evolua para a fundação do Espeta as Carnes, do Picanha Nobre e do Estou em Brasa.