No início dos anos 90, o cineasta francês André Téchiné veio ao Brasil para filmar um roteiro de sua autoria. Catherine Deneuve encabeçaria o elenco, na pele de uma mulher à procura do filho desaparecido em um exótico país estrangeiro.
O filme chegou a entrar em pré-produção. O realizador visitou locações, fez testes, eu fui escolhida para um papel, fizemos algumas leituras, até que tudo foi suspenso por falta de financiamento. Téchiné, como é normal acontecer no cassino chamado cinema, deixou a América do Sul frustrado. Anos mais tarde, ele rodaria a película na Ásia com o título de Indochine.
No dia de sua chegada, o produtor de cinema Marcus Tim França foi recebê-lo no aeroporto. Quando, a caminho da Zona Sul, o carro mergulhou nas trevas do Túnel Rebouças, o diretor parisiense foi acometido por um ataque de pânico incontrolável. Ofegante, implorou para que Tim o tirasse dali o mais rápido possível. Téchiné sofria de claustrofobia, tinha pavor do subterrâneo.
Impotente diante da via expressa sem saídas alternativas, o brasileiro aconselhou o europeu a fechar os olhos e deu ordem para o motorista acelerar. No segundo trecho da descida aos infernos, marcado pelo viaduto a céu aberto que atravessa o Cosme Velho, outro desespero de morte até que, finalmente, a Lagoa Rodrigo de Freitas mostrou sua graça.
Depois do sufoco, encontrar caminhos alternativos que evitassem o subsolo se transformou em um dos problemas logísticos cruciais da empreitada cinematográfica. O Rio é um queijo suíço de atalhos furados na pedra. O cineasta se viu obrigado a ziguezaguear pelos morros, levando três vezes o tempo do resto dos envolvidos para chegar aos mesmos locais.
Ver-se livre dos buracos de minhoca cariocas deve ter sido uma das poucas compensações do fracasso do projeto no Brasil. E olha que Téchiné nunca cruzou o Túnel Zuzu Angel, também conhecido como Dois Irmãos.
Eu morei dez anos em São Conrado e atravessava aquele breu entremeado de galerias sujas todos os dias.
Alto, apertado e sem acostamento, o traçado do Dois Irmãos tem a forma de uma longa e interminável curva. É impossível ver a luz do dia a não ser quando já se está bem próximo à saída. Transeuntes suspeitos se arriscam a pé em meio ao fluxo intenso de veículos, e é comum o roubo de fios do sistema de iluminação. Há algo de sinistro ali. A escuridão, associada à falta de ventilação e à fuligem, atrai pensamentos traiçoeiros para a mente do motorista incauto.
Jamais experimentei nada perto da angústia de Téchiné, mas medo, paranoia, desesperança e infelicidade estão na lista de devaneios sombrios que já me abateram na travessia. O Dois Irmãos faz mal à saúde, à psíquica principalmente.
Outro dia, voltando tarde da noite do Projac, fiquei surpresa com a luminosa pintura branca que revestia a entrada do túnel no sentido Leblon. A obra é parte da reestruturação da divisa da Rocinha com o asfalto. Os holofotes a toda a força, rebatidos na parede clara, enchiam de civilidade o ambiente.
A alegria não durou muito. Alguns metros adiante, o Rio de Janeiro da Copa e da Olimpíada foi brutalmente interrompido pela engenharia jurássica original. A boa impressão da chegada, no entanto, perdurou até a Gávea. Nenhuma ideia soturna me atravessou a espinha naquela madrugada fria de quarta-feira.
Bem que podiam fazer a mesma faxina nas outras três bocas de acesso, a viagem interminável de ida e volta para Curicica ganharia novos ares.
A Linha Amarela possui túneis exemplares, com recuos de segurança, claridade e placares eletrônicos que indicam as condições do trânsito do trajeto; são excelentes modelos para as entranhas da cidade.
Quem disse que intestino não precisa de plástica?