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Escravos

Leia na crônica de Fernanda Torres

Por Fernanda Torres
Atualizado em 11 ago 2017, 19h36 - Publicado em 6 ago 2017, 23h00
 (Isabelle Barreto/Veja Rio)
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Meus bisavós vieram da Sardenha, no fim do século retrasado, para substituir a mão de obra escrava nas fazendas de café. Pastores da cidade de Bonarcado, foram convencidos a arriscar a sorte por uma campanha implementada pelos governos italiano e brasileiro. Em um ano, garantia a propaganda, retornariam do Brasil com a vida ganha.

Meus parentes cruzaram o Atlântico num navio que só não era negreiro porque todos vieram por vontade própria, sem saber que jamais regressariam à terra natal. Em condições subumanas, quase afundaram — a embarcação foi a pique na volta.

Quando chegaram, foram transportados em vagões de gado até Minas Gerais e distribuídos pelas terras dos fazendeiros. A irmã de minha bisavó, casada e grávida, foi catalogada, junto com o marido, como um núcleo familiar autônomo e separada dos demais.

Acomodados nas antigas senzalas divididas em cômodos, gastaram o parco salário para adquirir bens básicos de consumo. A dívida, contraída na venda local, logo transformou trabalhadores livres em devedores, sem direito a deixar o emprego e o país. A única saída era a fuga.

A primeira delas se deu depois de os Pina descobrirem o paradeiro da filha gestante e do genro, num latifúndio vizinho. Em meio à retirada, o parto de gêmeos aconteceu ao relento, nos trilhos da linha férrea. Um dos bebês não resistiu e o outro se tornou o primeiro brasileiro da tribo.

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A saga é digna de Charles Dickens, com direito a mortalidade infantil, miséria, resignação e à eterna saudade de casa.

Minha mãe foi criada por minha bisavó Maria e conviveu intensamente com essas figuras saídas do filme Pai Patrão, de Vittorio e Paolo Taviani. Mas, por mais que ela se esforce em descrevê-­las e lembrá-las, trata-se de uma memória que se extingue na geração anterior à minha.

Dona Arlette realizaria uma segunda travessia, trocando o subúrbio carioca e o berço operário pela Zona Sul e pelas artes cênicas. De certa maneira, também me considero filha de imigrados. A moral de Ipanema, os desquites em série dos pais das amigas, o jet set libertário das mansões da Joatinga e a pansexualidade dos anos 1970 divergiam, e muito, dos costumes de meus primos, tios e avós da Tijuca e da Ilha do Governador.

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Os sardos semiescravos da família levaram três gerações para parir alguém que se autodenominou Fernanda Montenegro. Recém-chegada da Flip 2017, que homenageou o escritor Lima Barreto, penso na diferença entre o que ocorreu com os meus italianos e os africanos que deram em Lima, Machado, Aleijadinho, Pixinguinha, Gilberto Gil e Lázaro Ramos.

Podem-se comparar as injustiças sofridas, mas o Defeito de Cor, como tão bem explicita o título do romance de Ana Maria Gonçalves, a pele preta, evidencia o abismo entre um ciclo migratório e outro.

Nenhum dos meus jamais ouviu de uma freira, como narrou a professora Diva Guimarães no auditório do festival literário, que, por serem sujos e preguiçosos, os negros só possuem a palma das mãos e a sola dos pés da cor branca, pois teriam se banhado mal, e por último, no rio sagrado que embranqueceu os cristãos.

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