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Fogo cruzado

Leia na crônica de Fernanda Torres da semana

Por Fernanda Torres
21 ago 2017, 15h30
 (Isabelle Barreto/Veja Rio)
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A tarde caía, quando deixei a serra, depois de um dia de sol frio no mato.

Desde criança, quando eu costumava passar os fins de semana num sítio em Teresópolis, lamento a volta para casa. O ar fresco da montanha, aos poucos, cede lugar à atmosfera abafada da Baixada; as árvores desaparecem depois de Xerém; o trânsito, cada vez mais pesado, afunila-se nas vias expressas; a fumaça das fábricas e dos caminhões encobre o céu claro; os motéis temáticos e os galpões de atacado enfeiam a paisagem; o fedor dos rios podres e o horror da civilização anunciam o retorno para a rotina da escola e do ganha-pão.

Como se não bastasse, a violência do Rio veio salgar, ainda mais, a descida para o inferno. Desta vez não foi diferente. Na altura de Caxias, me preparei para encarar a Linha Vermelha. Já havia anoitecido, e a paranoia era grande. Foi quando meu cônjuge sugeriu consultar o Onde Tem Tiroteio.

— O o quê?! — perguntei.

— O OTT ou o Fogo Cruzado — ele disse —, tanto faz.

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Trata-se de dois aplicativos de celular que, à maneira do Waze e do Google Maps, trazem um mapa detalhado da cidade, assinalando, com precisão, os arrastões, as trocas de tiros, os assaltos e as desgraças possíveis no trajeto.

Baixei os ditos e, em segundos, pularam na tela dezenas de bombas, projéteis e marcas vermelhas, indicando o grau de perigo que enfrentaríamos no caminho. E não só. Ao clicar nos ícones, uma descrição pormenorizada das ocorrências informava a data e o horário dos incidentes, o número de mortos e feridos e o autor da notificação.

Não havia perigo nas vias de acesso naquela noite, mas a quantidade de sinalizações nas comunidades vizinhas à RJ-071, à BR-101 e à BR-040 não deixava dúvida de que vivíamos numa cidade em guerra.

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Enquanto escrevo este artigo, na aparente segurança do lar, rea­bro o Fogo Cruzado e contabilizo 122 notificações no município do Rio. A experiência de checar o aplicativo é uma mistura desconcertante de Vale do Silício com guerrilha urbana, primitiva. Um GPS da barbárie social, que delineia limites cada vez mais tênues de civilidade, traça linhas imaginárias que lhe permitem fingir controle. Se andam estuprando mulheres, sequestrando criancinhas para servir de escudo, esfaqueando ciclistas nessa ou naquela rua, basta tomar uma paralela e ignorar a realidade.

Na Síria, dizem, também é assim. Eu acreditava que Aleppo havia se transformado numa terra arrasada, até assistir a um documentário que mostrava que a guerra pesada, com mísseis capazes de destruir quarteirões inteiros, acontece na periferia do centro, esquecida pelo governo de Bashar al-Assad, que se tornou local de insurgência de grupos radicais. Do outro lado da cidade, as famílias continuam indo ao cinema, as crianças à escola, numa normalidade semelhante à do meu retorno para casa, guiada pelo Onde Tem Tiroteio e pelo Fogo Cruzado.

A Síria é aqui.

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