Chorei mais de uma vez vendo Mogli.
Chorei pela consciência que cresceu em mim, desde a primeira vez em que fui apresentada ao Menino Lobo, da ameaça que é o homem e sua flor vermelha, o fogo, cujo domínio definiu a fronteira entre natureza e cultura, entre homem e animal.
A hecatombe nuclear era um temor real na minha infância, as chamas do Apocalipse, mas, com o passar dos anos,
o horror ganhou outros contornos que tornam Mogli ainda mais tocante, e relevante.
Acabou-se a crença de que a razão, a ciência e a tecnologia nos protegeriam da morte e da finitude. As ogivas ainda pululam pelo planeta, mas são o plástico, os agrotóxicos, os canos de esgoto e de escape dos automóveis que emporcalham ar e mar. O consumo e a parafernália que sustenta nosso conforto se viraram contra nós.
Somos bichos, tão em risco quanto os outros.
Eu detestei Perdido em Marte, uma película boba, calcada na ideia de que, com uma mente sã e um bom manual de sobrevivência, é possível se livrar de uma enrascada cósmica. Não há metafísica naquele astronauta; nenhum momento de confusão mental; não há vazio, não há medo e não há tédio; falta a condição humana, falta tudo o que Kubrick ensinou em 2001, uma Odisseia no Espaço.
Faz pouco tempo, descobri Tristes Trópicos e, com ele, Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos é o oposto de Perdido em Marte. Durante a travessia do cerrado, solto entre Mato Grosso do Sul e Rondônia, o cientista francês sofre um processo profundo de transformação. Aqui, no Brasil de 1936, o branco racional toma consciência da atrocidade vivida pelos povos indígenas das Américas, perpetuada por uma Europa dita civilizada. A extensa obra desenvolvida por Lévi-Strauss a partir dessa primeira odisseia se ocupa de recuperar e entender a organização social e os mitos de uma cultura que sofreu genocídio.
Em O Cru e o Cozido, o antropólogo relaciona uma série de lendas que tratam da conquista do fogo. Felinos, porcos, pássaros, macacos, tatus, sapos e cobras são aliados, inimigos, cônjuges e parentes dos homens, não há divisão entre as espécies. É puro Mogli.
O jaguar é o Prometeu das Américas, o detentor do fogo, uma fera que assa a própria caça, numa época em que o homem comia cru. O jaguar adota um curumim perdido e o presenteia com o arco, a flecha e o fogo. É ele quem o civiliza. O jaguar de Lévi-Strauss é a pantera Baguera, é o tigre Shere Khan.
Walt Disney fez de Mogli um dos meus mitos fundamentais de infância. Adulta, com meu filho a tiracolo, eu o revejo enriquecido pelo tempo, pelas leituras e por uma cinematografia de cair o queixo.
Envelhecer tem suas vantagens.