Fernanda Torres

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Vício

Eu me recuperava de uma operação boba que exigia resguardo. Sem conseguir concentrar-me em coisa alguma, e beirando uma depressão criativa, meu irmão lançou mão da isca fatal. Você já assistiu Mad Men?, perguntou. Não, eu disse. Então, seus problemas estão terminados. Foi a primeira vez que me apeguei a uma série. Em quinze dias, […]

Por Daniela Pessoa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 fev 2017, 17h27 - Publicado em 19 jul 2016, 19h23
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    Eu me recuperava de uma operação boba que exigia resguardo. Sem conseguir concentrar-me em coisa alguma, e beirando uma depressão criativa, meu irmão lançou mão da isca fatal. Você já assistiu Mad Men?, perguntou. Não, eu disse. Então, seus problemas estão terminados.

    Foi a primeira vez que me apeguei a uma série. Em quinze dias, dei conta de sete temporadas. Eu não comia, não dormia, enfileirava capítulos, presa ao destino de Don Draper como se fosse o meu próprio. Mais um… sussurrava, às 2 da matina, a voz traiçoeira, e lá se iam mais cinquenta minutos do meu tempo na Terra.

    Foi um horror.

    Cheguei ao derradeiro fim exaurida, com raiva da cena ruim, em que Draper chora numa sessão de análise de grupo, de um centro alternativo da Califórnia. Nem eles aguentavam mais.

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    Passei dois anos com medo de me apegar a outra droga pesada e ser arrastada pela compulsão doentia. Neste ano, caí em tentação.

    Eu trabalhei muito para pôr de pé um programa chamado Minha Estupidez. Entrevistar pessoas é uma responsabilidade terrível, você tem de ler muito, se preparar, mesmo quando o assunto é a própria ignorância. Quando terminou, entrei num estado parecido com o do pós-operatório, a cabeça oca, preguiçosa, pedindo férias.

    Downton Abbey… soprou o insidioso diabinho, e o mesmo drama me acometeu. Os dilemas de lady Mary, as tiradas de Violet, o casamento de lord e ladyship, Edith e sua criança bastarda, o futuro do castelo, a morte de Sybil e Matthew, o drama de Anna e Bates. Meu Deus, como é bom se perder no problema dos outros, quanto mais quando quem sofre são aqueles atores ingleses, que não erram uma nota e nasceram para representar.

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    Foram cinco temporadas em dez dias. Quarenta e duas horas de provação. Eu via no táxi, no banheiro; mal punha o filho na cama, já ansiava por mais. Os roteiristas dominam uma técnica maldita, que aciona as regiões mais viciantes do cérebro. É como o jogo de azar, a nicotina, o açúcar — você acaba um episódio e não acalma enquanto não parte para outro.

    Como demorei a me render à adição, posso alimentar o vício com seis, sete temporadas acumuladas. Seria impossível enfrentar a conta-gotas, com um parco capítulo semanal. Série é imersão. Uma mistura potente de cinema com novela de televisão.

    Das que eu vi recentemente, The Knick, dirigida por Soderbergh, com Clive Owen na pele do cheirador dr. Thackery, o melhor papel da sua carreira, termina em vinte episódios e é de um requinte digno do melhor cinema já produzido. Marco Polo conta com um elenco precioso de estrelas orientais, um Kublai Khan de cair o queixo e a deusa de O Último Imperador, Joan Chen. Cheguei ao fim hoje, estou órfã. E tem Narcos, com o talento de José Padilha de explicar a perversa lógica da política econômica do crime e a proeza de Wagner Moura de encarar o ícone colombiano.

    O coisa-ruim me tentou com Game of Thrones, mas achei meio Senhor dos Anéis. Depois de Vikings, talvez eu me renda. É isso ou entrar num programa de desintoxicação, para voltar para os meus livros, meus escritos e a vida como ela é.

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