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Gustavo Pinheiro

Por Gustavo Pinheiro, escritor, dramaturgo e roteirista Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
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A insustentável tristeza do ser

A vida tem exigido tamanha resiliência que apenas seguir adiante se tornou uma opção inviável para algumas pessoas

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Atualizado em 21 Maio 2020, 10h44 - Publicado em 11 Maio 2020, 12h51
A coragem que a vida quer da gente é diariamente testada por uma pandemia e por um genocida no poder, a empilhar corpos. (Ilustração Bianca Smanio/Reprodução)
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“Bruno se jogou da janela essa noite. Morreu.”

A mensagem me chegou pelo WhatsApp numa manhã ensolarada de março. Não é possível, pensei. Talentoso, jovem, bonito, querido pelos colegas. Por que ele colocaria fim à própria vida? Nos encontramos no teatro ano passado, rimos e falamos de projetos. Os quinze dias de isolamento vividos até ali teriam sido tão cruéis a ponto de desesperançá-lo de forma definitiva?

Agora chega a notícia da partida do grande Flávio Migliaccio. “Me desculpem, mas não deu mais”, escreveu o ator no derradeiro bilhete. “Migliaccio, eu te entendo”, desabafou o amigo Lima Duarte, num vídeo que fica por dias atravessado na garganta.

Sempre fiquei em dúvida se o suicídio é um ato de coragem ou de covardia. Nem um, nem outro, me ensina Analice Gligliotti, psiquiatra das melhores. Ideias suicidas são como uma febre, um indício do organismo de que algo vai mal e inspira cuidados.

O coronavírus impediu temporariamente a estreia da peça “Antes do ano que vem”, monólogo que escrevi para Mariana Xavier e que Ana Paula Bouzas e Lázaro Ramos dirigiram com tanta delicadeza. Na comédia, seis mulheres desesperadas, por diferentes razões, cogitam cometer o suicídio faltando meia hora para o Reveillon. A ideia da peça surgiu a partir de uma matéria que afirmava ser o final do ano a época com mais tentativas de por fim à própria vida. Quando o mundo está em festa, celebrando a renovação da esperança para mais um ano, a barra pesa demais para alguns.

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Anda difícil seguir o conselho de Riobaldo. A coragem que a vida quer da gente é diariamente testada por uma pandemia e por um genocida no poder, a empilhar corpos. A vida tem exigido tamanha resiliência que apenas seguir adiante se tornou uma opção inviável para algumas pessoas. Por que alguns sucumbem e outros resistem?

Tudo isso me vem à cabeça aqui no quarto 214 do hospital onde acompanho minha avó de 101 anos. Nada de coronavírus. Numa caminhada besta, da sala para a varanda, a perna hesitou e o fêmur se partiu. Os gritos lancinantes de dor pré-cirurgia não a impediram de perguntar sobre uma possível data de alta. Quer logo sair daqui e não é por medo de contaminação de Covid-19: é que ainda há muito à espera lá fora. Todo dia, uma lição de vida.

A ideia da morte, se aparece, é sempre em tom jocoso. “Está um cabo de guerra: os de cá contra os de lá”, afirmou meio de brincadeira, meio à vera, referindo-se aos dois filhos, às irmãs e ao marido que não estão mais aqui. Sobrevivente de uma tuberculose que lhe custou um pulmão aos 16 anos, me ensina que tudo é um olhar para a vida: isso também vai passar.

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Surpreso com a boa forma da senhora centenária, o médico perguntou o segredo para se chegar a tal idade com tanta lucidez. “Não fumar, não jogar valendo dinheiro e não se meter na vida dos outros”.

A fórmula deve funcionar. A alta está marcada para hoje.

 

Gustavo Pinheiro é dramaturgo e roteirista.

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