Hoje seria dia de fazer as malas. Iria à casa de câmbio comprar dólares, separaria o passaporte, imprimiria os ingressos de “Quem tem medo de Virginia Woolf” comprados há meses pela internet. Rupert Everett viveria George e Laurie Metcalf interpretaria Martha na nova temporada do clássico de Edward Albee na Broadway.
Seria, iria, separaria, imprimiria, interpretaria, viveria: planos reduzidos ao futuro do pretérito pelo corte seco que interrompeu nosso presente. Nada de malas, dólares, passaporte, Albee, Metcalf. De repente, pequenos grandes sonhos derrubados em strike.
Por muito tempo pertenci ao time dos que acham que tem controle absoluto sobre tudo o que virá. Até que um dia sentei diante de uma santa terapeuta (um beijo, Ana!) e desfiei o meu rosário: eu vou fazer tal coisa, em tanto tempo vai acontecer não sei o quê, a consequência só poderá ser não sei o quê mais. Em 40 minutos eu resumi os 10 anos seguintes. Uma lista de certezas. Ela me ouviu com paciência budista e concluiu: “Olha, eu tô impressionada… Você já sabe tudo que vai acontecer e eu não sei nem o que vou almoçar daqui a 20 minutos. Você combinou todo o seu futuro com quem?”. Fiquei sem resposta: a pergunta não estava na minha lista de previsões.
Com delicadeza, a terapeuta foi martelando as minhas certezas, uma a uma, e me ensinando a viver na impermanência, essa sim indubitável. Sessão após sessão, ano após ano. Não sei como aquele Gustavo-Vida-Planejada de 20 anos atrás reagiria ao atual sacode planetário. Eu tive o privilégio de aprender no amor, tem gente que vai ser obrigada a aprender na dor. É claro que fazer planos faz parte da nossa existência. Freud já nos ensinou que quem não deseja está morto. Mas permitir à vida uma espécie de margem de erro, uma porta encostada para o acaso, é uma sabedoria. Mistério sempre há de pintar por aí.
Casamentos, formaturas, empreendimentos, negócios, projetos: tudo castrado por um vírus do tamanho de um milésimo de um fio de cabelo humano. Assim como todo mundo, eu também senti o baque: peça e série adiadas, o filme que subiu no telhado, a viagem cancelada, a reforma postergada. Mas a essa altura do campeonato, tentar ter controle sobre o incontrolável é pedir para adoecer. “Quem vive no futuro está ansioso e quem vive no passado está deprimido. Quem vive com a cabeça no presente pode encontrar o contentamento mais possível agora”, resumiu o neurocientista Sidarta Ribeiro.
A grande lição da pandemia é esfregar na nossa cara que não tem jogo ganho. Quem tem certezas definitivas ainda não entendeu nada. A segurança vendida pelo futuro do presente é uma ilusão enfiada goela abaixo de sociedades adestradas para se preocuparem com um tempo que elas sequer sabem se chegará. Poupança, previdência, crédito consignado e cheque pré-datado que o digam.
Foi preciso nos trancarmos em casa para realizarmos que, na verdade, as certezas sempre estiveram à mercê do imponderável. A pandemia é um convite a nos entregarmos aos braços do subjuntivo. Braços instáveis, porém generosos.
A vontade de viajar permanece. Mas se a Laurie Metcalf voltar aos palcos, se o dólar não estiver valendo sete reais, se o passaporte não estiver vencido. É um exercício. Não vou mentir: não é fácil. Mas recomendo.
Gustavo Pinheiro é dramaturgo e roteirista.