Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro
Documentário de Emicida na Netflix resgata o orgulho do passado e a fé no futuro
A primeira vez que ouvi o disco “AmarElo”, do Emicida, foi no final de 2019, na casa do Lázaro Ramos. Estávamos ensaiando “Antes do ano que vem”, monólogo que escrevi para a atriz Mariana Xavier e que Lázaro dirigia. O espetáculo, assim como tantos outros projetos e sonhos, de todos nós, acabou sendo abatido antes do voo pela loucura que foi 2020.
A peça contava a história de sete mulheres em situações limites de suas vidas, faltando apenas trinta minutos para o Reveillon. Lázaro havia escolhido acabar a peça com os versos de Belchior, resgatados por Emicida em seu disco: “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte/ E tenho comigo pensado Deus é brasileiro e anda do meu lado/ E assim já não posso sofrer no ano passado/ Tenho sangrado demais/Tenho chorado pra cachorro/Ano passado eu morri/Mas esse ano eu não morro”. Olhando 2020 em retrospectiva, premonitório é pouco para definir o que nos atingiria logo em seguida aos ensaios.
Ficamos meses em casa, mergulhados em dúvidas e medos. Depois de uma ligeira flexibilização, a contaminação volta a crescer e vemos a dificuldade das pessoas em se trancarem em casa novamente. Afinal, é verão, Deus é brasileiro e anda do nosso lado. Será? Quase 200 mil pessoas não estão mais aqui, vencidas pela Covid-19.
Então, afundados no pessimismo e na tristeza de 2020, Emicida lança “É tudo pra ontem” (Netflix). Em quase uma hora e meia de documentário, o artista mostra o processo de criação do disco “AmarElo” e os bastidores da sua apresentação histórica no Teatro Municipal de São Paulo. Mas vai além. O filme remonta o legado dos negros na História do Brasil e faz justiça a grandes figuras, como Wilson das Neves, Ismael Silva, Johny Alf e Ruth de Souza. “É tudo pra ontem” é sobre a urgência de corrigir desigualdades sociais, raiz dos nossos maiores problemas.
O mais bonito no discurso de Emicida é que a sua justificada raiva vem coberta por uma camada generosa de grandeza. Não há revanchismo. O caminho para Emicida é estabelecer pontes, não apenas com outros ritmos (como o samba e o samba rock), mas com pessoas com outras histórias de vida. Inclusive pontes com pessoas brancas, em parcerias com Fernanda Montenegro e Marcos Valle. “O que a gente tá fazendo, mano, é tirar essa coisa nublada que faz com que as pessoas entendam a gente como lutas separadas. Não tem como você lutar por liberdade pela metade. A partir do momento em que você mergulha numa reflexão sobre gênero, numa reflexão sobre classe, numa reflexão sobre raça, tá ligado?, tem duas maneiras de você conduzir isso: uma é hipócrita, que pensa só em você. A outra é: se a gente quer isso pra nós, a gente quer isso pra todo mundo”.
“É tudo pra ontem” é o filme que precisávamos para reestabelecer a fé no 2021 que acaba de começar, depois de um 2020 dilacerante. Não é preciso gostar de rap para se emocionar com o documentário de Emicida.
Basta gostar de gente.
Gustavo Pinheiro é roteirista e dramaturgo.