Uma amiga me mandou uma mensagem, assustada. “Como vocês sabiam? Como vocês sabiam?!” Ela se referia à peça Os Impostores, que montamos no fim do ano passado, em que uma família ficava forçosamente confinada em um bunker diante da ameaça de uma hecatombe da natureza.
Expliquei a ela que, apesar de os artistas terem o corpo bem plantado no presente — ou talvez por isso —, enxergamos o que nos espera com antecedência, como uma espécie de sismógrafo da humanidade. O espelho retrovisor dos artistas é às avessas: aponta para o futuro. Na peça A Tropa, quatro filhos e um pai militar discutiam os valores da democracia e o direito às diferenças. Escrevi o texto em 2015, quando Bolsonaro ainda era apenas um deputado do baixo clero. E, agora, aqui estamos.
A atual pandemia foi democrática: todos nós recebemos os sinais. Entendeu quem quis. Derretimento de geleiras, queimadas, derramamento de óleo, devastação das florestas. O planeta, exausto, partiu para uma solução drástica. Uma espécie de Ctrl+Alt+Del para reequilibrar as forças: recolheu-nos em casa para que Veneza voltasse a ter peixes nas águas de seus canais, agora limpas. Trancou os chineses em seus lares para que o ar voltasse a ser respirável. Como uma mãe à moda antiga, o meio ambiente nos colocou de castigo e disse que só sairíamos do quarto quando fizéssemos as pazes, obrigando-nos a uma união forçada em nome de uma causa um pouco mais relevante do que as últimas eleições: a sobrevivência.
Nas poucas vezes em que saí de casa durante o isolamento social para resolver questões práticas, o que mais chamou minha atenção foram as trocas de olhares entre os estranhos nas ruas. Olhares de julgamento, de crítica, de insegurança, mas também de apoio e de solidariedade. Numa sociedade humilhantemente desigual como a brasileira, nunca estivemos no mesmo barco de maneira tão clara. A dura realidade é que seu álcool em gel não serve de nada se eu tossir. No desespero da iminente catástrofe, cada um correu atrás do que lhe parecia essencial. Foi assim que descobrimos que estocar papel higiênico é fundamental para alguns.
E quem nos ajudou a segurar a onda e nos manter sãos no isolamento forçado por tanto tempo? A cultura. A tão vilipendiada cultura, a perseguida Geni que não cansa de tomar pedradas da ignorância e da desinformação. Foram os filmes, as séries, as novelas, os livros, os streamings de música que fizeram companhia a adultos e crianças nas horas mortas. Toda essa produção não vem das indústrias poluentes de petróleo e gás ou automobilística. É resultado do trabalho dos mais de 5 milhões de profissionais da cultura no Brasil.
Com o fechamento dos teatros e casas de shows, janela virou palco. Circularam nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp: a italiana cantando ópera na varanda, o pianista aplaudido na sacada em Barcelona, o violonista na Glória. Até este momento, não se tem notícia de alguém ter ido à sacada para recitar o Teorema de Pitágoras ou declamar os trechos mais emocionantes do Código Civil. Todo artista tem de ir aonde o povo está, e o povo está de pijama no sofá da sala: artistas brasileiros e estrangeiros fizeram transmissões ao vivo e gratuitas de peças e shows, editoras liberando seus e-books, além de cursos on-line e visita aos acervos de alguns dos melhores museus do mundo.
Quando estive no Japão, fiquei impressionado com os pequenos caminhos de água a circundar as casas e os templos. “É para nos lembrar todo dia de que a vida é fluxo e impermanência”, me explicou um local. Tudo passa. Vai levar um tempo, mas essa pandemia vai passar. E, quando isso acontecer, preparem-se: cheios de saudade, voltaremos a nos frequentar, a nos beijar e nos abraçar, a rir, a nos tocar.
Cinemas, teatros e casas de shows vão reabrir e vamos nos prestigiar e nos assistir, e contar histórias olhos nos olhos, seguidos de longos aplausos. Alê e Fagundão, “Baixa Terapia” virá ao Rio e será um sucesso. Lazinho, estou louco para conferir as suas novas direções no teatro e no cinema. Carol e Paulinho, “Pá de Cal” cumprirá sua temporada e será lindo. Marieta, Andrea e Aderbal vão reabrir o Poeira, e corram para assistir ao trabalho hipnotizante da Eliane. Não demora muito e poderemos conferir a exposição dos irmãos Campana no MAM e o show da Letrux no Circo e folhear os livros na Travessa. Por fim, teremos a confirmação de que Chay é Domênico. Daqui a pouco, o amor será eterno novamente. Podem anotar. Quem afirma sou eu, aqui do futuro.
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