Se eu estivesse vivo, faria aniversário nesta semana. A julgar pelos anos anteriores, amigos mandariam mensagens carinhosas, eu faria um almoço em família e brindaria à chegada de mais um ano. Mas nada disso vai acontecer. Morri há pouco. Está lá na certidão de óbito inexistente: falência múltipla de empatia. Não houve sofrimento. Nem por mim, nem pelos outros. Quando vi, já estava estirado no chão, morto, fazendo planos, sonhando com o fim do isolamento, trabalhando e escolhendo pizza no iFood.
Não estou sozinho. A catástrofe que me matou também acertou em cheio cada um de vocês. Desculpem ser o emissário da notícia: somos 210 milhões de brasileiros, todos mortos. Mortos vivos. Um “Walking Dead” de baixo orçamento, sem maquiagem convincente.
A morte de um brasileiro a cada 45 segundos não é capaz de desfibrilar a nossa indiferença e nos inspirar como nação, a exemplo da Copa do Mundo, das Diretas-Já e do impeachment (a produção original de 1992, não o remake recente). Quem não morreu de vírus, morreu de apatia.
Se estivéssemos vivos, voltaríamos à Avenida Rio Branco, onde já estivemos tantas vezes, exigindo uma reação à pilha de corpos que se amontoam sobre nossos espíritos cansados. Uma resposta coletiva às humilhações negacionistas e às ofensas diárias. Mas o que toma as ruas são protestos mixos para que o barzinho da esquina fique aberto até mais tarde.
Apenas uma sociedade muito doente assiste a iminência da morte de meio milhão de compatriotas sem agir. Infelizmente, não podemos fazer nada. Almas penadas não reagem para além de posts indignados no Instagram. Nossos corpos insepultos estão preocupados com o sol que faz lá fora, com a praia liberada e com os ovos de Páscoa que já chegaram às Lojas Americanas.
“No tempo em que festejava o dia dos meus anos eu era feliz e ninguém estava morto”. Perdão, Pessoa, isso foi no ano passado. Este ano estamos todos mortos. O pai da Olivia, a mãe da Denise, o cunhado da Helena, o namorado da Michelle, o pai da Renata, a mãe do Luiz Bernardo. Estar vivo é mais que respirar. Nós, que ainda não morremos, ficaremos surpresos quando descobrirmos que já estamos mortos também.
Gustavo Pinheiro é roteirista e dramaturgo.