Apesar de não ser considerada uma fashionista, Kamala Harris, a vice-presidente eleita dos Estados Unidos, está dando muitas lições de como usar a moda para comunicar seus valores e crenças. E, sim, está fazendo política e história também através de seus looks. Em seu histórico discurso que marcou a vitória de Joe Biden e do Partido Democrata, Kamala escolheu vestir um look total branco, com terno e camisa de seda com gola de laço. Não foi à toa. A cor foi símbolo do movimento sufragista feminino nos Estados Unidos, que há exatos 100 anos deu à mulher o direito de votar. Não bastasse isso, a estilista escolhida foi Carolina Herrera, mulher e venezuelana, uma imigrante, dona de uma das maiores marcas da moda americana.
Em 1913, numa estratégia inteligentíssima que considerou a moda como ferramenta de luta, as integrantes do National Women’s Party, que vinham sendo alvo de chacotas nas caricaturas de jornais, passaram a se vestir em 1913 de maneira super elegante nos protestos, porém, com um uso de cores simbólico que representava as iniciais de sua principal reivindicação: Give Women Votes (Dê às mulheres o voto). A partir de então elas passaram a usar amarelo dourado (golden), branco (white) e violeta (violet). Esta passou a ser a identidade visual da luta, com o uso de broches e faixas nesta cartela de cores.
O look total branco continuou a ser símbolo da luta das mulheres negras pelo direito ao voto, que não foi concedido em 1920, mas apenas em 1965. A mesma cor também foi a escolha da primeira mulher negra eleita para o congresso americano, Shirley Chisholm, em 1968, em seu discurso da vitória e também foi usada por Michelle Obama no baile inaugural do primeiro mandato de Barack Obama, em 2009, quando ela dançou com seu marido vestida num longo branco de um ombro só assinado por Jason Wu.
Agora, Kamala Harris retoma a roupa branca para criar a imagem do discurso da primeira mulher eleita para a Vice-Presidência de seu país, dizendo: ”Embora eu seja a primeira mulher neste cargo, não serei a última”. Suas palavras revolucionárias e sua imagem viralizaram nas redes sociais e ganharam as capas dos jornais no mundo inteiro. A moda foi instrumento para deixar clara a importância de sua vitória para as mulheres.
O uso político da moda por Kamala não está inserido apenas nas ocasiões especiais, mas também no dia a dia. Sua opção por vestir tênis All Star Converse durante quase toda a campanha reforça que o conforto é fundamental para que ela, e qualquer um, realize seu trabalho. Ela é a vice-presidente dos Estados Unidos e evita saltos, e tudo bem. Não é o salto alto que define sua capacidade na política. O tênis confere também uma aproximação com o pensamento mais jovem e exalta a mulher que não se encaixa em padrões de beleza e vestuário para serem aceitas profissionalmente. Kamala e seu par de tênis tornaram obsoletos todos aqueles guias de etiqueta de como se vestir no trabalho.
Por tudo isso, Kamala já se tornou uma das novidades mais importantes da moda este ano. A forma como ela se expressa através das roupas mostra que a moda para ela vai muito além do que ditam as capas de revista. Se Michelle Obama influenciou o mundo inteiro rumo à democratização da moda, misturando em seus looks peças grifadas e de fast fashion, Kamala parece que está focada em libertar as mulheres de certos padrões, reforçando o que é importante em sua luta. E pode anotar: por conta dela, o tênis Converse estará com tudo na moda, nas ruas e nas revistas.
Julia Golldenzon é estilista especializada em festas e noivas. Formada em Comunicação Social pela PUC-Rio, ela trabalhou em marcas como Farm e La Estampa e, desde 2013, tem um ateliê no Leblon, que leva seu nome.