O primeiro beijo, a primeira namorada, a primeira transa. Acredito que estas nostálgicas lembranças tenham ocorrido diversas vezes durante a quarentena. A dúvida do trabalho, emprego, empresa, contas, viagens, etc…Todos, sem exceção, perderam noites e noites de sono, ansiedade, irritação, impaciência e tantos outros sentimentos, afinal, nosso cotidiano sofreu uma mudança nunca antes imaginada. Mas o tempo passou e as coisas, muito que lentamente, estão voltando a algum tipo de normalidade. As incertezas deixaram de ser tão assustadoras e tivemos tempo para pensar, ou melhor, relembrar.
Muitas pessoas me descreveram situações parecidas durante a quarentena. Histórias pra cá, contos pra lá, no final, os resumos foram sempre os mesmos: lembranças da infância e, principalmente, do início da juventude. Comecei a relembrar minha adolescência. Das partidas diárias de futebol na minha rua, onde os chinelos faziam o papel das traves, ao sonho de ser um rockstar. Minha geração cresceu vendo o fenômeno Axl Rose e o inacreditável Slash. Ter um disco do Guns and Roses era o presente desejado um ano inteiro. O primeiro skate, a primeira bateria, a primeira guitarra. Somos de uma geração que adorava shows ao vivo. O rock era uma religião. Eu nasci e cresci em Bento Gonçalves, cidade pequena da Serra Gaúcha no Sul do Brasil, e por lá, a diversão eram os shows das bandas locais, (das quais fiz parte de algumas), e o bom e velho chimarrão aos domingos na Avenida Planalto (coisa que acontece até hoje).
Nos anos 90 existiam dois grandes bares por lá: o Atalaia e o 252. Eram demais. Naquele tempo, as ruas no entorno desses bares eram lotadas de Fiat 147, Chevettes, Monzas. Os playboys andavam de Passat Point e de Gol GT. O Kadett foi o Audi da minha geração. Como esquecer aquelas noites, em que a “vaquinha” dava pra comprar uma garrafa de Rum Bacardi e um litrão de Fanta laranja. Sinto o gosto até hoje. Passear de carro dezenas de vezes em frente a estes bares era o programa favorito, mesmo que dentro do Chevette do meu pai tinham sempre, no mínimo, cinco amigos. O motivo desta “aglomeração” é justificada de algumas maneiras. Primeiro que nem todo mundo tinha carro. Segundo e mais importante: quem estava no carro era obrigado a dividir a gasolina. Contribuir com alguns reais era o tíquete para estar no carro. Quem tinha carro poderia ter alguma chance com uma garota. Naquele tempo era jogo duro. As conquistas eram difíceis e nem sempre tínhamos coragem de abordar. Tínhamos que ter certeza que daria certo, caso contrário, a zoação era eterna.
Os domingos eram divididos entre: Ayrton Senna de manhã, churrasco no almoço e o mate amargo no entardecer na Planalto. Como não se emocionar com o Senna? Creio que para muitos (me incluo nisso) foi nosso último grande ídolo e herói nacional da minha geração. Há quem diga que o Romário, grande nome do Tetra em 1994, também tenha esse papel, mas a vida e o legado do Ayrton Senna são incomparáveis e incontestáveis.
O Brasil, de tantas fronteiras culturais, tem em comum o estilo de vida da geração 80/90. Não tínhamos celular e seus aplicativos. Telefone era coisa de rico. Custava uma fortuna e demorava meia década para ser instalado. Se sua casa tinha telefone fixo você era rico. Muito rico. Programas culinários, TV por assinatura, Netflix, 4K. Nada disso. Minha infância foi vendo uma TV em preto e branco valvulada que demorava dois minutos pra funcionar após ligada. Tudo porque as válvulas tinham que ser aquecidas. Antes da internet, da fibra ótica e da antena parabólica existia o bom e velho Bombril pra dar jeito na imagem. Era colocar um nas antenas da TV e tudo estava resolvido.
Meu videogame era um Atari e os cartuchos dos jogos eram divididos entre: Freeway, Pac Man, Enduro e Pitfall. Era emocionante. Quem tem 40 anos ou mais, com certeza, quebrou, no mínimo, um manete do controle tentando fazer o boneco correr mais rápido. Como não sentir saudade do telefone público movido a fichas de metal? E quando você queria marcar um encontro era o “orelhão” o ponto de referência. Ninguém ousava chegar atrasado. Os horários dos amigos eram sempre britânicos.
Professora Noris
E a turma do fundão da classe? Quanta saudade. Era um bando de meia dúzia de amigos (meninas eram exceção), afinal, a irmandade masculina era intocável. Os mais bagunceiros e metidos sentavam sempre no fundo da sala. Naquele tempo, os colegas de classe se conheciam no maternal e seguiam ano a ano juntos até o fim do segundo grau escolar, hoje chamado de ensino médio. O recreio, também conhecido como intervalo, era dividido entre o lanche da cantina, o futebol na quadra e o olhar para o grupo de meninas sentado na escadaria da escola, fofocando sobre os meninos. A melhor disciplina daquele tempo era educação física: simplesmente porque ganhávamos uma bola de vôlei e o professor dividia a classe em três equipes. Time de meninos, time das meninas e um time misto. Eram 50 minutos de esportes e de algum tipo de flerte, conhecido atualmente como azaração.
Naquele tempo, antes mesmo dos meus 18 anos, lembro que minha mãe sempre dizia: “você vai lembrar somente dos professores maus. Dos bonzinhos você vai esquecer rapidamente”. Essa frase fez sentido décadas depois. Como esquecer da professora Nóris? A “general” da escola que tinha um trabalho de colocar os alunos nas salas de aula a cada entrada, a cada término do recreio. Nós, os espertos, queríamos enganá-la de algum jeito, mas com a Nóris, não tinha jeito. O primeiro convite era educado, já o segundo era tiro, porrada e bomba. Foi essa “professora malvada” que ajudou a educar minha geração. Nós respeitávamos mais a professora Nóris que a nossa própria mãe. Um chamado dos pais na escola era nossa certeza de porrada e de castigos intermináveis. Diferente da geração bunda mole atual. Será que não está faltando mais educadores como ela atualmente?
Não estou reclamando da modernidade, das facilidades da vida digital, da tecnologia, dos avanços tecnológicos nas mais diversas áreas. Pelo contrário. A vida é mais fácil com celular, internet e redes sociais. Minha reflexão é a formação do cidadão. Do seu exemplo e de seu comportamento. Não tem como comparar as gerações. Os adolescentes e estudantes de hoje não nos representam. Não concordamos com seu comportamento, com suas atitudes e com suas ideologias, assim como bem provavelmente você não aceite nossas críticas e nosso posicionamento intelectual. Sabe o significado de democracia? Eu emito minha opinião e você a sua e assim, democraticamente, convivemos, contrários ou não, num mesmo espaço. Pode ter certeza que eu, quarentão, não tenho medo de debater e não uso de meios jurídicos pra me defender, afinal, o judiciário já tem coisas muito mais importantes para se preocupar. Você não acha?
Cheers!