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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Anderson Pedroso (padre): “2025 se apresenta como mais uma travessia”

"Neste ano, vivemos o janeiro mais quente da história, seguido por um fevereiro quente e marcado por expectativas…"

Por lu.lacerda
Atualizado em 8 mar 2025, 10h09 - Publicado em 8 mar 2025, 07h00
padr anderson
 (Divulgação/Divulgação)
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Neste ano, vivemos o janeiro mais quente da história, seguido por um fevereiro, igualmente quente, e especialmente marcado por expectativas… E, no início de março, expectativas se tornaram realidade na forma de uma estatueta, símbolo de alegria emblemática atravessada pela dor de um desaparecimento insolúvel, finalmente transformado em reconhecimento (memória-permanência): “Ainda estou aqui…”.

Na madrugada seguinte, a conclusão de um desfile de carnaval trouxe mais uma linda imagem: Milton Nascimento atravessando a Marquês de Sapucaí, anjo negro elevado, sem medo de expor uma fragilidade física, que, paradoxalmente, manifestava toda a força invencível de uma existência amorosamente vivida: “Quem acredita na vida não deixa de amar.” Atrás dele, um rio azul e branco, prelúdio das águas de março fechando o verão.

Alegria emblemática atravessada de dor; avenida performática atravessada de cor; existência fugaz, mas vigorosamente atravessada de amor.

A metáfora da travessia parece nos instigar. Embora algumas viagens sejam verdadeiras travessias, viver uma travessia é diferente de fazer uma viagem.

Em si mesma, uma viagem é deslocamento, requer certo planejamento, geralmente tem tempo de início, meio e fim. Os motivos podem ser alegres ou tristes, turismo, cultura, trabalho ou diversão, em tempos de férias. Em tudo isso, a dimensão física é permeada por percepções; mas, essencialmente, é deslocamento exterior, e há certo controle.

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A travessia é diferente. Embora tenha uma dimensão física, esta é somente o contexto exterior, que tem por função mobilizar o nosso interior. Há algo de peculiar na travessia: seus obstáculos. Eles têm uma enorme força de atração porque falam de fronteira, de limite, de ultrapassar o umbral do estabelecido e viver uma existência capaz de transcender-se… Já nas narrativas míticas, a travessia envolve enfrentar um obstáculo natural e perigoso (um deserto, um abismo, um rio, o mar).

Há travessias que podem ser simples: ir de um ponto ao outro; outras, mais complexas, desconfortáveis e até arriscadas. Do ponto de vista temporal, nem sempre podemos saber onde  estamos numa travessia — podemos nos sentir no meio dela, mas, geralmente, só teremos certeza quando chegarmos ao final.

Na travessia, temos a sensação de que algo nos toca em primeira pessoa. Os obstáculos provocam a sensação, inicialmente vertiginosa, de uma maior descoberta de nós mesmos. É aí que nos tornamos quem devemos ser: mais fortes, inclusive em nossas fragilidades.

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Enquanto as iminentes águas de março vêm fechando esse tempo de vivências intensas, pergunto-me que tipo de travessia me espera? Uma alegria que atravessará a dor, uma avenida que se transbordará de cor, uma existência habitada de amor…

Toda a travessia é, no entanto, movida por esperança. Nesse sentido, diante das travessias que nos aguardam, não há outra preocupação senão cultivar a esperança.

Os poetas exploraram a esperança de diferentes ângulos. Muitos a celebraram como uma força de resiliência, e até uma guia na escuridão; outros, como uma fonte de renovação. Não somos responsáveis pelo que sentimos, mas sim pelo espaço que damos aos nossos sentimentos dentro de nós. E os sentimentos tendem a ser invasivos, a querer se instalar. Se todos os sentimentos são legítimos, nem todos devem gozar de muito espaço em nós, e nem por muito tempo, já que alguns se transformam em verdadeiros vilões e forasteiros; mas isso é um outro assunto…

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O importante é reconhecermos que há uma potência afetiva na esperança: ela nos enraíza mais em nossa existência para, em seguida, elevá-la de forma leve e misteriosa. Ela nos permite habitar o tempo presente projetando-se para o futuro, e tem o poder de transformar nossa percepção do mundo, da vida e de nós mesmos, em uma dinâmica psicológica positiva.

É linda a esperança, mas, no arco de uma vida, talvez se articule mais como um conjunto de muitas esperanças; algumas, esperanças cotidianas e fugazes; outras, tão persistentes que, por mais que resistamos, insistem em nos habitar. É muito próprio do método jesuítico dividir as meditações em três pontos e, finalmente, propor algum exercício em torno delas. Talvez, um pequeno exercício seja: primeiro, identificar nossas pequenas, médias e grandes esperanças; segundo, protegê-las de narrativas que possam encerrá-las em modelos ideológicos e esquemas de perda de liberdade. Que ninguém as roube ou manipule — os totalitarismos, fanatismos e toda as formas de redução da realidade à sua dimensão puramente material e imediata são um grande perigo hoje. Terceiro, estar abertos e dispostos a reconfigurar nossas esperanças à luz de um horizonte de sentido maior, ou de uma Esperança maior — um Deus amoroso que está sempre à nossa espera, pois tem esperança em nós.

Enfim, com as águas de março que encerram o verão, nosso ano de 2025 finalmente se apresenta como mais uma travessia, dessa vez, no território da esperança. Peço que não nos falte alegria, pessoas para compartilhar o caminho, e que o amor, em todas as estações, seja invencível.

O jesuíta padre Anderson é reitor da PUC-Rio, onde chegou em 2020, e atua como professor do Departamento de Artes e Design. É doutor em História da Arte Contemporânea e Estética Filosófica, pela Sorbonne, em Paris e mestre em Filosofia Estética (Philosophie de l’art), pela mesma Sorbonne. Fez a graduação e o mestrado em Teologia, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Possui licenciatura, também, em Filosofia (Universidade do Sagrado Coração), em Bauru (SP), mas sobretudo conquistou o coração dos cariocas.  

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