Charles Fricks (ator): “Tive o prazer de atuar como Fernando Gasparian”
"Carnaval e Oscar: quem é esse roteirista que pensou em algo tão perfeito?"

No próximo dia 7 de março, eu e minha Cia. Atores de Laura vamos reestrear, na Casa de Cultura Laura Alvim, o espetáculo “A palavra que resta”, com direção e adaptação de Daniel Herz, para o premiado livro homônimo de Stênio Gardel. Nesse caminho até lá, temos um carnaval e um Oscar — estes últimos eventos se misturam. Domingo (02/02) será uma explosão de alegria, mais uma Copa do Mundo, em pleno março. Ter um filme brasileiro, falado em português, concorrendo a três categorias (melhor filme internacional, melhor atriz e melhor filme) tão importantes na premiação cinematográfica de maior visibilidade do Planeta, um prêmio que foi criado para valorizar o cinema estadunidense, é uma vitória que cabe muito bem ser comemorada durante o maior espetáculo cultural da Terra. Quem é esse roteirista que pensou em algo tão perfeito?
Em “Ainda estou aqui”, tive o prazer de atuar como o ex-deputado, industrial do ramo têxtil, criador do jornal Opinião, editor de livros e fundador (com a mulher, Dalva Gasparian) da livraria Argumento, Fernando Gasparian (o Gaspa). No filme, sou o amigo que tenta levar a família Rubens Paiva para Londres, fugindo da ditadura brasileira, que havia ficado mais ferrenha e violenta depois da publicação do AI-5 (dezembro de 1968). Foi uma cena curta, mas cheia de afeto, carinho, amor e amizade entre essas duas famílias. Os melhores amigos que se separaram, no caso destes dois, para sempre, por conta da perseguição dos militares a quem era contrário ao regime autoritário da época.
Fernando Gasparian foi o proprietário da Paz e Terra, uma importante editora de livros que publicou, entre outros, autores perseguidos pela ditadura que não encontravam espaço para seus trabalhos, como Paulo Freire, por exemplo. Ao final da cena, Selton Mello deixa escapar um “eu te amo”, quase sussurrado, que eu retribuo (se bem me lembro, essa ideia surgiu no dia em que ensaiamos a cena com Walter e a preparadora de elenco, Amanda Gabriel). Hoje, assistindo, me parece uma despedida ainda mais triste desses grandes amigos. Amigos que atuaram contra o regime, levando cartas, escondendo militantes, publicando livros, jornais e revistas. A cena é toda um pouco sussurrada — assuntos que não podiam ser falados nem em casa, nem na rua, muitas vezes, nem em família, nem em uma livraria. As paredes tinham ouvidos. Nunca se sabia quem poderia ouvir e denunciar aos militares.
Quase sussurradas eram também as indicações de Walter Salles aos atores enquanto nos dirigia. Suas indicações eram passadas quase ao pé do ouvido. Seu jeito carinhoso, educado e atencioso para o trabalho de todos os atores (e de toda a equipe) transborda na tela em cada cena.
Os amigos aparecem dançando e cantando ao som de Tom Zé, Juca Chaves, Os Mutantes. Aquela casa cheia, alegre, solar nos 30 minutos iniciais do filme. Esses eram alguns dos brasileiros corajosos que arriscavam a própria vida para lutar pelo que acreditavam. Pela liberdade de ser, pensar e viver no Brasil da década de 70. Era preciso fazer alguma coisa, meus amigos.
No espetáculo “A palavra que resta”, o personagem principal, Raimundo Gaudêncio de Freitas (vivido por todos os atores), decide, aos 71 anos, voltar a estudar para finalmente conseguir ler a carta que o grande amor da sua vida, Cícero, enviou para ele quando eram adolescentes. Raimundo passou 51 anos da sua vida sem deixar ninguém ler a carta. Separado abruptamente de Cícero depois que suas famílias descobriram a relação, Raimundo é expulso de casa, “em nome de Deus” e da vergonha, e sai de sua cidade para tentar ser livre em outro lugar. Numa cidade um pouco maior, conhece Suzzanný que lhe ensina a ter coragem para assumir sua sexualidade e ser livre para ser quem é.
Se pudesse fazer algum paralelo entre esse dois trabalhos, “Ainda estou aqui” e “A palavra que resta”, citaria coragem. A coragem que Guimarães Rosa nos inspira quando precisamos dar passos importantes: “o que ela (a vida) quer da gente é coragem”. Personagens que, por motivos tão diversos, não ficaram acomodados como tantos por aí.
Em tempo: Sr. Roteirista da vida, por favor, escreva um final bem bonito para o nosso filme e nossa Fernandinha neste domingo!
Charles Fricks é ator. Começou a carreira em sua cidade, Cachoeiro de Itapemirim (ES), em grupos de teatro amador. Depois de morar um ano nos EUA, voltou direto para o Rio; em 1993, entrou para a Companhia Atores de Laura; estreou na TV, na minissérie “Chiquinha Gonzaga” (1999), na TV Globo. Atuou em nove filmes, e sua última novela foi “Terra e Paixão” (2023), na TV Globo, onde interpretou Ademir La Selva, irmão mais novo de Antônio (Tony Ramos).