Crônica, por Eduardo Affonso: Um condomínio dos deuses
"Descobri que não moro na Barra, mas no Olimpo. Vou parar de reclamar"

Fui ontem, pela primeira vez, a uma reunião de condomínio. Sempre achei que pagar uma exorbitância de taxa era punição suficiente, e não precisava passar pelo flagelo de duas horas numa cadeira de plástico admirando vizinhos se estapearem verbalmente.
Devia ter ido antes. Devia ter ido sempre. Porque reunião de condomínio é a melhor forma de mudar a impressão que se tem dessa parcela da humanidade que calhou de viver empilhada junto com a gente.
Na cadeira ao lado, sentou-se um sujeito fortão, com cara de cansado (é impressão minha ou sujeitos fortões sempre têm cara de cansado?). Na hora de assinar a ata de presença, viu que moro no apartamento logo abaixo do dele, e puxou papo.
– Também em romiófice?
– Também – respondi, sem saber se dizia que mal consigo trabalhar com a barulheira que ele faz.
– Eu ainda não me acostumei. Prazer, Sísifo.
– Como?
– Sísifo.
– Prazer: Eduardo. Sísifo é um nome … [pausa dramática para encontrar o adjetivo certo, ou, pelo menos, escapar dos errados] um nome … raro. Nunca conheci nenhum xará seu.
– Sou o único mesmo.
– Sua família devia gostar de mitologia.
– Meu pai, Éolo, era muito ligado nisso.
– Não me diga que sua mãe se chama…
– Enarete. Naná, para os íntimos.
– (…)
[Esses três pontinhos entre parênteses significam que fiquei sem saber o que dizer. Seria ele o…?]
– Sou eu mesmo. Zeus me libertou. Saí da Grécia e vim morar na Barra. Mas alguns hábitos são difíceis de largar. Depois de arrastar aquela pedra enorme todo dia, o dia inteiro, por milênios, agora eu não consigo parar de…
– … arrastar móveis – completei.
– Isso. Como você sabe?
– Sísifo, eu moro no apartamento de baixo. Você arrasta móveis sem parar, das 6h30 da manhã até as 11h da noite!
– Alto lá: 6h45! Às 6h30 eu me levanto, e aí arrasto a cama. Mas isso não conta. É só às 6h45 é que eu começo a arrastar tudo efetivamente. E paro às 22h45. Mais 15 minutos para arrastar a cama de volta pro lugar.
Eu sabia que havia uma explicação plausível.
Sísifo nem percebeu minha perplexidade. Acenou para alguém e abriu um sorriso quando minha vizinha do lado, a quem só conheço de bom dia, se aproximou. Ela é simpática, mas tem o hábito de ouvir axé e sofrência no volume máximo. Um gosto musical que não combina com sua elegância.
– Senta aqui, Atena!
Eu sabia que a cara dela me lembrava alguém!
– Atena é uma pessoa muito justa. Gosta de dividir tudo com todo mundo – sussurrou Sísifo. O que é dela é dos outros.
Estava explicada a música alta para o prédio inteiro ouvir. O incenso que invade o corredor e contamina os apartamentos do andar. A conversa ao celular na varanda de modo que a vizinhança toda tome ciência de cada detalhe da sua vida.
Antes de chegar até onde estávamos, Atena encontrou e cumprimentou alguém. Ouvi trechos do que diziam (Atena fala alto para que ninguém, num raio de uns 250 metros, se sinta excluído na conversa):
– Dorinha, sua linda! Você prometeu que vinha, mas eu sei que é fogo aguentar este tipo de reunião, ainda mais pra você, que pensa tão fora da caixinha…
– Ah, miga. Soltei a criançada do plêi e vim.
Dorinha – sei agora – é Pandora. A que solta a criançada no plêi, e seja o que Zeus quiser.
– Hipnos e Morfeu se mudaram, sabia?
– Nêmesis me contou. Viu que ela é candidata a síndica? Agora vai.
Imagino por que Hipnos e Morfeu tenham ido embora, coitados. Quem já não via a hora de fazer o mesmo era eu, porque começam a discutir a cota extra, e Éris, da cobertura, resolveu bater boca com Hécate, a bruxa do 71.
Na saída, cruzei com Dionísio, o vizinho de baixo – que devia ter dado um tempo na festa de arromba (que é praxe no seu apartamento) e ido para a reunião por achar que a bagunça ali seria maior.
Descobri que não moro na Barra, mas no Olimpo. Vou parar de reclamar. Inclusive quando Cérbero – sem focinheira – rosnar pra Duda na saída do elevador.
