Imagem Blog

Lu Lacerda

Por Lu Lacerda Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Jornalista apaixonada pelo Rio

Psicanalista fala sobre o “janeiro seco”, o mês da sobriedade

"Se há uma ideia de um 'janeiro seco', é porque dezembro e novembro foram muito molhados", diz Fernando Scarpa

Por lu.lacerda
Atualizado em 12 jan 2025, 11h31 - Publicado em 12 jan 2025, 10h00
Fernando Scarpa
 (Divulgação/Divulgação)
Continua após publicidade

O ano chegou e, com ele, muitas pessoas focando num só objetivo: a sobriedade. Não no sentido figurado, mas no literal mesmo, o de estar sóbrio, no chamado “Dry January” ou “janeiro seco”, o mês pós-derrota-máxima de fim de ano, em que o amanhã é da matrícula na academia, do tempo de pagar promessas quase nunca realizadas.

Uma delas é excluir o álcool como parte do rito, que cresceu em popularidade desde que a expressão surgiu, há mais ou menos 10 anos, nos EUA, claro. Segundo pesquisa da “CivicScience”, empresa de análise de dados do consumidor, um quarto dos adultos em idade legal nos EUA participaram do “Dry January” no ano passado, número bem maior do que em anos anteriores. E, como tudo que vem de fora, chegou com força ao Brasil, até pelas redes sociais, como algo a ser pensado, experimentado, seja pra curar a ressaca prolongada, seja para só testar a capacidade de abstinência. Coincidentemente ou não, muitos restaurantes têm oferecido menus com drinques criativos e sem álcool para você não se sentir excluído da turma que continua com tudo no “janeiro molhado”.

Como diz a OMS, em editorial publicado este mês, na “The Lancet Public Health”, prestigiada revista científica inglesa, “não existe nível de consumo de álcool que seja seguro à saúde”, frase que também viralizou entre nutricionistas, nas redes.

Só por curiosidade: o tempo necessário para eliminar completamente o álcool do organismo varia de pessoa para pessoa e depende de vários fatores, dentre os quais, a quantidade, o peso corporal, o sexo, a idade e o funcionamento do fígado. Em casos de intoxicação alcoólica moderada, o álcool pode ser detectado no sangue por até 12 hora; na urina, por 12 a 24 horas; no ar expirado (bafômetro), por até 24 horas.
Que tal  fazer deste mês um primeiro passo para um melhor olhar pra si no físico, mental e emocional? Pode até ser um pequeno gesto, mas uma grande atitude para este começo de ano, hein! E muita autoridade sobre si.

A coluna conversou com o psicanalista Fernando Scarpa, especialista em dependência química, sobre as dificuldades da abstinência, mesmo que temporária.

1 – Sobre o “janeiro seco”, o que você acha desse movimento?

Não conhecia o termo nem sabia que existia há mais de 10 anos. Agora, se a ideia é se abster de beber dentro de uma política de redução de danos, é superválida. A ideia de Ano Novo traz sempre uma provocação no sujeito para que ele faça algo novo. Então, se há uma ideia de um “janeiro seco”, é porque dezembro e novembro foram muito molhados, portanto as pessoas se encharcaram de álcool e ficaram acabadas. Para alguns, o álcool traz uma sensação de “encharcar”, de inchaço. Se você observar os alcoólicos, a grande maioria está inchada porque o álcool se transforma em açúcar depois de ingerido. No Brasil, o “janeiro seco” é muito falado, mas não sei se vivido, especialmente no Rio, até pelo clima, estilo de vida, do tomar um chope à beira-mar. Então, não acredito que, no Rio ou no Brasil, isso vá adiante.

Continua após a publicidade

2 – Acredita que isso possa ser uma tendência real?

Seria ótimo ser uma tendência real — a ideia do happy hour é experimentar um alívio do dia de trabalho. O álcool é o grande anestésico da alma. Freud chamava isso de “solvente do super eu”: você passou um dia tenso, o sujeito dá um gole e faz, “ahhhh!”. É aquele alívio! Igual ao efeito do espinafre no Popeye, que percorre o corpo todo e dá uma potência. O álcool dá ao sujeito esse estado de alívio. Acho muito complicado pra turma que bebe cumprir isso. Pode ser até uma moda, que todos usam e levam adiante, mas têm modas que não pegam.

3 – Início de ano traz milhares de novas (velhas) resoluções, como ir à academia, emagrecer, fazer ioga, novas matrículas etc. O que impulsiona essas resoluções e até quando e aonde vai essa força de vontade (sei que é individual, mas no geral, é assim…)?

Esse sentimento é caracterizado por uma motivação pontual dessa época de fim de ano, quando vem um ânimo pela exaustão de velhos padrões vividos. É o famoso “este ano não vou fazer daquele jeito, não vou repetir isso”, mas são hábitos impregnados que levam muito tempo para se dissipar. Os três primeiros meses do ano são críticos: é uma dieta, a promessa de não comer doce, não fazer compras, processo de separação, então são 90 dias difíceis pra tudo, que também é o período de experiência no trabalho, meses iniciais de uma gravidez (o período mais perigoso); então, os que conseguem ultrapassar esses meses têm mais chance de ir adiante. Até os alcoólicos anônimos propõem 90 dias de abstinência, 90 reuniões presenciais que ele precisa diariamente para renovar essa decisão, porque ela tende a esmorecer. Temos que respeitar as singularidades humanas; os mais perseverantes têm mais chance de manter uma decisão, um compromisso. No caso de alcoolismo, se você quer parar de beber, o ideal é ter uma decisão consolidada, que você não pare e seja impulsionado pela necessidade do novo, uma vez que você está saturado de vários padrões.

4 – Quais os efeitos no corpo e na mente quando a pessoa deixa de beber regularmente?

No corpo é óbvio, como o inchaço, porque ele é carboidrato e açúcar, e é lógico que você vai engordar. Se você diminui a quantidade, evidentemente vê a diferença, vai ter um corpo melhor, um fígado melhor, dormir melhor. E, na mente, a pessoa se sente mais satisfeita. Em estados graves de alcoolismo, as pessoas são devassadas pelo dia seguinte, pela vergonha, a culpa e a amnésia alcoólica. Parando de beber, dá um sentimento de satisfação e um fortalecimento porque o sujeito consegue decidir e manter sua decisão. Estudos também mostram que parar de beber pode melhorar a memória, a concentração e outras funções cognitivas além de reduzir o risco de câncer a longo prazo (está associado a câncer de fígado, boca e mama).

 5 – Se for muito difícil, com resoluções excessivamente ambiciosas, quais os artifícios que alguém pode usar para conseguir? Com o “janeiro seco”, também veio o “janeiro úmido” um primo brando, que dá tempo pra pessoa refletir sobre sua relação com o álcool. O que você recomenda?

Dentro da minha experiência, a recaída é comum, e o processo de decisão é fortalecido na fase inicial, como evitar pessoas, lugares, grupos e situações de risco. Claro, você ainda está frágil nesse início da decisão, tem vontade de beber, e o álcool está em todos os compromissos do seu entorno, na ordem social, dos amigos, dos convites. Como é que você vai dizer não? O “nunca mais eu vou beber” é muito ambicioso, tanto que o protocolo dos Alcoólicos Anônimos é “só por hoje, 24 horas”. É mais fácil eu manter um compromisso renovado diariamente do que um a longo prazo. O que sugiro é um zelo pela decisão, perceber os momentos em que vem uma vontade louca de beber e entender que essa vontade é imediatista, mas, se você se segurar, consegue não beber. Toda proposta muito grandiosa fica inacessível: se eu tenho 1.60 metros, devo instalar prateleiras numa altura acessível. Decisões que estão acima da capacidade de o sujeito cumprir funcionam como um fracasso anunciado. O ideal é parar totalmente de administrar doses, porque é fácil perder o ponto. Manter uma abstinência calcada num processo de redução de danos é perigoso. Refletir é fundamental e até buscar ajuda profissional para dar conta do seu desejo.

Continua após a publicidade

6 – Pela sua experiência, qual a frequência de uma “recaída” com metas muito ambiciosas?

A frequência de recaídas é muito maior com uma meta muito ambiciosa. Idealizações e grandiosidades só atrapalham a realização da decisão, então isso já é uma malandragem, né? O “nunca mais” é muito perigoso porque não se sustenta.

7 – Do contrário, muitas pessoas que se esforçam para limitar ou renunciar ao álcool tendem a descobrir que não precisam dele para aproveitar a vida como pensavam? Acredita que o álcool seja também uma fuga ou uma necessidade de sentir prazer o tempo inteiro? Como comer, fazer sexo ou se drogar?

É mais fácil você renunciar do que tentar limitar o álcool porque, quando você entra nesse processo de limitar a bebida, para casos de compulsão intensa, a chance de fracasso é enorme, pois você vai estar sempre em situação de risco. E aquela decisão não está bem elaborada, tanto que a tentativa de beber menos explica que eu não quero parar, mas quero desconsiderar que há uma compulsão em mim. No entanto, depois de beber, como o álcool é o “solvente do super eu”, portanto, da censura, já não tenho mais aquele grau de lucidez e o mesmo compromisso com aquela decisão. “Só por hoje, amanhã eu paro”, e o processo se repete. Parar de beber não é só parar de ingerir álcool: parar de beber significa uma mudança de estilo de vida, porque vai dar recaída. É experimentar outros verbos da vida, o ser, estar, permanecer, poder ir a uma praia, ler um livro, ocupar-se de outros interesses, senão eu só tenho a ocupação de beber. Tem uma fala dos Alcoólicos Anônimos fantástica: “A maior distância entre mim e o álcool é o tamanho do meu braço”, ou seja, é o braço que segura o copo. Para os que conseguem levar adiante um processo de abstinência e que, por conseguinte, conseguem incluir novos hábitos, evidentemente vai ter prazeres muito mais interessantes do que só as questões da euforia do álcool. Tanto que a maioria dos tratamentos de abstinência baseia-se no dano. Eu busco atuar com os meus pacientes no luto pelo bem-estar que a substância química traz, porque é desse aspecto que ninguém quer abrir mão. As pessoas querem aquele bem-estar, a euforia, aquele estado de que “a vida é bela”. Então vamos fazer um luto por esse grande bem-estar para encontrarmos um outro bem-estar. Vamos substituir esse bem-estar por outro. O álcool é uma forma de anestesiar a alma, o sofrimento. A maioria dos casos de alcoolismo está no universo masculino; com isso, um comprometimento com a questão da potência sexual, porque ereção e álcool demasiadamente não combinam. E quando a pessoa começa, não consegue parar. É como o chocólatra abrir a caixa de bombom: enquanto não para, não sossega.

8 – Você acredita que é mais fácil a Geração Z adotar um estilo de vida mais sóbrio em comparação com as gerações anteriores? Por quê?

Essa geração (dos nascidos a partir de 1995) tem menos capacidade motivacional, com baixo comprometimento — uma geração bem perdida. As gerações anteriores introduziram mais a lei, a ordem, as contenções, embora tenham expressões muito grandes, mas havia um comprometimento muito maior com a própria vida. A Geração Z é menos racional, e não a vejo adotando um estilo de vida mais sóbrio.

9 – É simples conseguir ficar sem beber por 31 dias, ou chega a ser um sonho pra muita gente? Quem alcança consegue, digamos, vitórias maiores? Quais as vantagens de ficar sem álcool por um tempo?

Quem consegue ficar 31 dias sem beber mostra alguma capacidade de se manter sóbrio, então ele tem uma probabilidade de se manter numa maior abstinência. O prognóstico é bom — são inúmeras as melhoras que um estado de sobriedade traz pra quem vivia lutando contra o alcoolismo. É um outro modo de viver. O sujeito se sente aliviado. Acontece também a depressão quando se suspende a bebida, porque o álcool é depressor – leva você lá em cima, mas, no dia seguinte, lá embaixo. A construção do vício é muito assim: você bebe, fica doidão, as primeiras horas de sono são boas, depois são horrorosas, a ressaca no dia seguinte, com mal-estar terrível, e vem aquela ideia “pra curar um porre, só bebendo mais”, e assim começa a construção. Os benefícios de parar estão também na estabilidade de humor: no início, vem o mau humor já que a pessoa está privada, está frustrada, mas posso chamar isso de frustrações ótimas, em que você vai sentindo um bem-estar gradativo e que vale a pena aquela decisão. Pelo bem-estar, você começa a não ter ressaca.

Continua após a publicidade

10 – O que você sugeriria para quem está tentando?

Examinar de que modo a pessoa está tentando parar, quais as estratégias e, se não estiver conseguindo, é porque está tudo errado. Outra coisa é a potência desse desejo: uma coisa é eu dizer que quero parar; outra é a ação desse desejo. Do verbo parar, eu paro, tu paras, ele para; então é preciso pôr o verbo em ação, do contrário, ela está banalizando, trazendo a ideia de parar como algo impossível ou muito mais difícil do que é pela ineficácia das estratégias. Eu não posso ficar saindo com um grupo de amigos que bebem se eu tenho um projeto pessoal. Preciso sair daquele coletivo, fazer uma reclusão para que eu consiga me blindar do efeito do meio ambiente. Aconselho então a procurar um profissional da área, que vai poder examinar o que está havendo e o motivo de o desejo não se tornar realidade. Sozinho é mais difícil.

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Domine o fato. Confie na fonte.
10 grandes marcas em uma única assinatura digital
Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe mensalmente Veja Rio* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Assinantes da cidade do RJ

a partir de R$ 29,90/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.