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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Renata Magalhães: “O cinema brasileiro vem insistindo há muitos anos”

"O que o filme do Walter representa e traduz para o cinema brasileiro é mais ou menos seis meses em 60 anos", diz ela

Por lu.lacerda
Atualizado em 26 jan 2025, 09h02 - Publicado em 26 jan 2025, 07h00
renata
 (Reprodução/Arquivo pessoal)
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“Ainda estou aqui”, de Walter Salles, fez história com três indicações ao Oscar — Melhor Filme Internacional, Melhor Filme e Melhor Atriz para Fernanda Torres  —, mexendo até com a vida dos entediados, aquele tipo que quase não vibra com nada. E boa parte dos brasileiros se sente parte do filme, como praticamente uma fase de autolouvação, com frases, tais como: “nós somos isso”, “nós somos aquilo”, “o mundo é que só está descobrindo agora”. Foi uma alegria coletiva, só se fala nisso. Há quem compare o filme à Copa do Mundo ou ao carnaval. Agora, a aposta é que tragam estatuetas douradas pra casa, dia 2 de março (entrega do prêmio), com um carnaval cinematográfico nas ruas do Rio. E lembre-se, amor, Walter e Fernanda são cariocas.

A produtora carioca Renata Almeida Magalhães é presidente da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais, a primeira mulher no posto mais importante do setor audiovisual do país e a única credenciada para indicar o filme que vai representar o Brasil no Oscar (até 2020, a seleção era feita pelo governo Federal), ou seja, é um nome importante quando o assunto é cinema. E, claro, ela vai à cerimônia.

Renata, muito atuante no setor, é falante, autêntica, bem-humorada. Formada em Direito e especializada em legislação de incentivo fiscal para cultura, estreou no cinema aos 17 anos como diretora com o curta “Vitória” (1979). Em seguida, foi assistente de direção no longa “Menino do Rio” (1981), de Antônio Calmon. Depois de acompanhar as filmagens de “Quilombo” (1983), de Carlos Diegues, o Cacá, também seu marido, e de transformar a experiência no documentário “Filme sobre filme”, passou a focar sua carreira na produção de longas, comerciais e videoclipes.

Produziu diversos filmes de Cacá, como “Um Trem para as Estrelas”, “Dias Melhores Virão”, “Tieta do Agreste”, “Orfeu” e “O Grande Circo Místico”; produziu sozinha e colaborou no roteiro de “Deus é Brasileiro”, filme que levou mais de 1,6 milhão de espectadores ao cinema; fez a produção de “Aumenta que é Rock and Roll”, de Tomás Portela, foi coprodutora de “Cinema Falado”, de Caetano Veloso, e produtora-executiva de Dedé Mamata, de Rodolfo Brandão.

Por enquanto, é isso. E vamos celebrar!

1 – O cinema brasileiro vem crescendo em atuações, produções, roteiros e importância. Levou 26 anos para o Brasil ter outra indicação num filme do mesmo diretor (Walter Salles) e, coincidentemente, tendo como protagonista a mãe de Fernanda Torres, atual indicada, Fernanda Montenegro. Acredita que a próxima geração de artistas (pós-Fernanda Torres, Selton Mello, Rodrigo Santoro e outros) terá mais chances de concorrer a um prêmio dessa importância na indústria, com a abertura internacional atual?

Acho que o cinema brasileiro vem crescendo e insistindo há muitos anos. O que o filme do Walter representa e traduz para o cinema brasileiro é mais ou menos seis meses em 60 anos, quer dizer, foi descoberto pelo mundo nos anos 60, através do Cinema Novo, o primeiro cinema terceiro-mundista, que se apropriou das novas tecnologias que surgiram durante a Segunda Guerra, de câmaras leves, gravadores portáteis, filmes sensíveis e, portanto, cinemas que saíam dos estúdios e iam para a rua. Isso apareceu pela primeira vez no neorrealismo italiano; em seguida, na nouvelle Vague; logo em seguida, no Cinema Novo. O primeiro foi o país “terceiro-mundista”, entre aspas mesmo, que se apropriou disso e mostrou para o mundo. É um lugar que ninguém sabia direito o que que era. Imagina assistir a “Deus e o Diabo na Terra do Sol” em 1964, no festival de Cannes? Era um mundo novo, uma geografia humana nova, uma estética nova, uma narrativa nova, barroca, louca, que, ao mesmo tempo, podia ser realista. E o Brasil vai pra frente, vai pra trás, vai pra frente, vai pra trás, mas o cinema resiste. É incrível que o Walter também foi lá e insistiu em fazer um filme tão pessoal, importante, sensível e tão necessário, que recoloca o cinema brasileiro no mundo num prêmio que é da indústria americana, que há quase 100 anos entende que cinema é estratégia. A gente chega lá numa hora muito preocupante do mundo, com um filme que fala algo muito necessário e moderno, pra gente entender que pode ir pra frente. Esse é o momento em que o Brasil pode lembrar ao mundo que dá para ir para frente sem esquecer o que aconteceu. Somos um país diferente, com uma cultura única e ao mesmo tempo universal. Estar agora com esse filme é importante para esses atores, para todos que vieram antes e para todos que virão depois, porque a arte vale a pena, é o cinema que vale a pena e a gente botou esse pezinho lá. Temos uma cultura riquíssima — tomara que comecem a conhecer mais, porque sei lá se o Planeta tem alguma salvação. O Brasil é nossa cultura, nossa originalidade, nosso ser cosmopolita e, ao mesmo tempo, tão pessoal como é o filme do Walter.

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2 – Sendo o Walter o diretor, nome já conhecido, pode ter alguma influência?

Claro. Ele construiu toda uma trajetória; não só entregou esse filme lindo, como nas parcerias que conseguiu fazer, especialmente com a Sony Classics, que é distribuidora americana do filme, comandada pelo Michael Barker, que talvez seja o último cinéfilo da indústria do cinema. Foi o cara que lançou Pedro Almodóvar nos EUA, sempre atento ao que estava acontecendo no mundo, e também o distribuidor de “Central do Brasil” (1999, também de Walter, com o qual concorreu ao Oscar, com Fernanda Montenegro). Mas nada disso seria suficiente se esse filme extraordinário não tivesse falando ao coração de todas essas pessoas. O Walter é uma influência eterna, um cineasta brasileiro que leva nosso cinema ao mundo. É esse olhar tão sensível sobre histórias que só a gente pode contar.

3 – Está mais perto o dia em que possa ser natural, diante dos talentos que temos no Brasil, ganhar prêmios importantes como o Globo de Ouro e o Oscar?

Bom, não sei, mas espero que sim. Espero que o cinema brasileiro entre na moda, que a gente ganhe muitos prêmios. A gente já tem o filme na competição em Berlim (“O último azul”, com Rodrigo Santoro, na disputa pelo Urso de Ouro), que é agora em fevereiro. É claro que o sucesso de um filme brasileiro leva todos juntos. Então estou torcendo não só pelos prêmios americanos, mas também que a gente esteja nessas manifestações que celebram o cinema no mundo todo.

4 – O tema pode ter ajudado nessa “coroação”? O filme conta a história de Eunice Paiva, uma mulher brasileira que enfrentou a ditadura militar e se tornou referência na luta dos povos indígenas, é uma produção que celebra a família e denuncia os crimes da ditadura, um reconhecimento internacional para a cultura brasileira. O sinônimo de “patriotismo” foi distorcido por algumas pessoas, que torcem contra a cultura, defendem a anistia de torturadores e passam pano para a ditadura militar. Com essa divulgação maciça, algumas pessoas podem mudar o ponto de vista sobre a ditadura e o cinema nacional?

Acho que a grande inteligência do filme é que você não precisa ser nem de esquerda nem de direita para se emocionar com ele. Porque é um filme que fala sobre uma família de classe média que é destroçada por uma usurpação de poder. Não é um personagem da luta armada. É sobre uma família destruída por um mundo arbitrário. Esse é o grande segredo do filme porque fala de um sentimento que qualquer pessoa pode entender e o coloca no momento histórico que, ainda mais agora, ninguém pode esquecer. Acredito que os bolsonaristas-raiz não vão gostar, nem devem ter assistido, nem devem gostar de cinema brasileiro. Mas acho que o filme atinge a qualquer pessoa, colocado num momento histórico que precisa ser lembrado e relembrado, porque o mundo vive um momento em que tudo isso pode acontecer de novo. Então a gente tem que estar atento. A civilidade não pode perder para a barbárie.

5 – Com a repercussão, o Brasil pode ser mais conhecido não como a selva onde jacarés andam pelas ruas? Como isso pode mudar a visão do nosso país?

Esse negócio de jacaré, sei lá, aparece no desenho dos Simpsons. Os americanos não sabem que existe mundo, né? Pelo menos, parte deles não sabe que existe mundo fora dos EUA. A Fernanda (Torres) está sendo brilhante em toda essa campanha, falando tudo certo, um orgulho. Numa entrevista pós-Globo de Ouro, ela falou que nós somos brasileiros, conhecemos a cultura francesa, americana, inglesa, italiana e agora era a hora de conhecer a nossa, porque é uma pena não conhecer Machado de Assis, Nelson Rodrigues… Pra quem acha que a gente é um país com jacarés nas ruas, não quero nem falar. Somos um país incrível que merece ser descoberto em toda a sua diversidade, sofisticação e inteligência. Talvez a gente possa fazer o mundo valer a pena.

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6 – Nesse sentido, não existiu polarização (ou foi mínima), e todos estão orgulhosos de ser brasileiros e também cariocas. Por que está cada dia mais difícil um mundo em que opiniões opostas possam coexistir?

A Fernanda também falou sobre esse resgate do tempo em que se passa o filme, uma consequência da Guerra Fria. É que ali, depois do Gorbatchov, a gente achou que tinha acabado a queda do muro de Berlim. De uns tempos pra cá, virou tudo polarizado de novo e a coexistência ficou difícil. Corremos o risco de reinaugurar uma nova Guerra Fria, então eu acho que esse é um dos grandes recados do filme, que a gente não pode deixar isso acontecer e que o mundo não pode reviver uma polarização, um ódio, uma paranoia, reviver coisas que tinham ficado no século passado. Vamos pegar o que era bom, não do que foi ruim, e tomara que o filme contribua para isso.

 
7 – Um amigo pediu para fazer uma pensata sobre a ironia de um filme brasileiro sobre a ditadura militar no Brasil ser indicado ao Oscar de melhor filme apenas três dias depois de, aparentemente, simpatizantes do Nazismo tomarem a Casa Branca. Como lidar com tamanha distopia?

Eu acho que a gente só lida com a distopia, reinventando a utopia. Então, vamos reinventar a utopia? Porque no mundo distópico nada vale a pena, porque nada tem solução. Então, viva a utopia, uma civilização humanista onde cabe todo mundo e não haja ódio.

8- E, por fim, quais os seus sentimentos com relação a atual fase do cinema? Pode descrever o que sentiu quando soube das indicações de “Ainda estou aqui”? 

Fiquei mais ou menos 20 minutos tremendo; meu coração disparou de tanta alegria, tanta felicidade. Essas indicações não só fazem justiça com o filme, como também com a cultura brasileira, o cinema brasileiro, e nos dá uma alegria num momento que a gente tanto precisa. É uma celebração da nossa existência, da autoestima. Fiquei realmente muito emocionada. É meio Copa do Mundo, mas diferente, tão merecido e tão necessário. E desse reconhecimento que a gente sabe fazer e quando a gente é bom, a gente é bom mesmo. Então, vivamos nós! Viva o cinema brasileiro! E vamos nessa.

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