Tá chovendo hambúrguer. De ‘picanha’
Caso de sanduíche do McDonald's é emblemático mas não é único
Em uma cena icônica do filme Um dia de Fúria (Falling Down, 1993), o personagem de Michael Douglas tem um de seus ataques de ira em uma lanchonete, ao abrir a caixa de um hambúrguer “triste, magro e miserável”, enquanto a foto do cardápio exibe um exemplar suculento do sanduíche. A gente se identifica. Ri de nervoso. E silencia.
Ficção?
Tá chovendo hambúrguer no mundo real. O sabor do momento, azedo, é de picanha. Está impregnado, entre outros, nas promessas dos políticos, nas letras minúsculas das publicidades em que o “Ministério da Saúde adverte”, no telemarketing que não autorizamos (muito menos aos domingos de manhã), no compulsório “eu concordo” dos cookies na internet, nos engodos do tuiteiro Elon Musk e, ainda (!), nas suculentas fotos de cardápios que não condizem com a comida fria e murcha dos pratos.
O caso do hambúrguer McPicanha é emblemático, mas não é único. Como consumidores e cidadãos, nos sentimos enganados o tempo todo. A “picanhada” ficou tão comum, que já naturalizamos determinadas situações, conformados, resignados e desesperançados. Cada um de nós tem histórias para contar.
No fim das contas, por aqui tudo se resolve com um “eu não sabia”, “lamentamos que possa ter gerado dúvidas nos consumidores”, “estamos revendo nossos processos para que isso não se repita”, “vamos averiguar o ocorrido”. Vez por outra, a bem da verdade, surge uma multa irrisória, uma punição leve ou um processo judicial de décadas, mas que não costumam resultar em mudanças efetivas e perenes.
Por mudanças efetivas e perenes, leia-se ética.
ESG
De uns tempos prá cá, o mundo empresarial e institucional vem abraçando e propagando o conceito de ESG (Ambiental, Social e de Governança Corporativa). Nas bolsas de valores, há medições para as boas práticas de sustentabilidade, que indicam aos investidores quais são as empresas comprometidas não apenas com o lucro. É um selo de credibilidade e ética. A ideia é que, em algum tempo, quem não estiver no caminho ESG, não terá recursos para se manter. Vai doer no bolso. Na B3, a bolsa brasileira, o ISE (Índice de Sustentabilidade Empresaria da B3) reúne as companhias alinhadas com os propósitos ESG.
Infelizmente, nem o ESG está a salvo de práticas enganosas. É o greenwashing. Medidas de fachada, discurso vazio, marketing sem compromisso, pão sem picanha. Apenas o sabor ESG, o aroma, um pouquinho de molho. Em uma pesquisa recente, de abril de 2022, feita pela consultoria americana The Harris Poll, dois terços dos mais de 1.400 executivos entrevistados afirmaram que têm dúvidas quanto às boas práticas adotadas pelas companhias em que trabalham. Mais da metade afirma que suas empresas já praticaram greenwashing.
A história do McDonald’s é cercada de polêmicas, e o cinema nos conta algumas, como a ficção Fome de Poder (The Founder, 2016) e o documentário Super Size Me (2004). Por outro lado, a rede é considerada uma referência no empreendedorismo, na modelagem de franquias, na gestão. Está presente no mundo todo. No site da controladora Arcos Dorados, há destaques para medidas de economia circular e de desenvolvimento sustentável na agricultura, por exemplo. O McDia Feliz, que direciona a receita da venda de Big Mac às instituições de combate ao câncer infanto-juvenil, é outra iniciativa de responsa, que acontece há mais de trinta anos.
Criada em 1940, a empresa pode fazer do McPicanha brasileiro mais um ponto de inflexão em sua trajetória – o que seria louvável e inspirador. Não enganar ou confundir o cliente é tão básico que está mais para a cartilha ABC do que para práticas ESG. Mas, se ficar por isso mesmo, além dos memes, o caso do hambúrguer vai acabar em pizza, coberta por um cínico “foi, mal, galera, a gente vacilou”. Torcendo aqui para que a cara de palhaço não seja a da sociedade.