Aconteceu com uma amiga. Mas podia ter sido comigo ou com você. Não vou entrar no mérito do nível e das nuances da canalhice que o namorado dela, agora ex, aprontou. Mas digamos que, de forma genérica, está entre as calhordices mais conhecidas da humanidade: traição. Foram muitos episódios, alguns bem mais graves que outros, mas coloquei no singular porque traição é menos sobre números e mais sobre atitude, postura, princípios.
Traição implica em quebra de confiança, mentiras, deslealdade e detalhes muitas vezes sórdidos. Uma pulada de cerca (ou mais de uma), por exemplo, sempre causa danos e exige “reparos”. Mas uma traição (que pode até ser a pulada de cerca dependendo do contexto maior) causa trauma. É um filme que fica sendo revivido na mente, um susto que parece não acabar nunca. Uma pessoa da sua total confiança levou (temporariamente que seja) algo seu, algo que não é palpável, mas vale muito. E levou também seu direito de preservar sua história com ela, já que a partir da decepção vivida você começa a rever toda a relação e já não sabe se de fato conheceu quem estava ao seu lado. A traição necessariamente traz à tona um lado obscuro do outro, um lado inescrupuloso e muitas vezes cruel. Um lado que você não conhecia e que agora percebe que esteve lá o tempo todo.
São muitas as traições possíveis num relacionamento amoroso. Muitas mesmo. Várias delas não envolvem sexo nem relações paralelas e muitas vezes são ainda piores. Mas, no caso da minha amiga, essa traição envolveu isso tudo e esse ex dela caprichou.
Numa conversa nossa, em que minha amiga estava completamente desorientada e arrasada, ela me contou que chegou a ligar para um amigo do ex, que tinha contato com ela, para desabafar e de certa forma cobrar explicações, já que se sentiu ludibriada por ele também, que certamente sabia ou estava “semi-ciente” do nível hard de canalhice do amigo e sempre o acobertou. No telefonema, o amigo lançou a seguinte pérola: “Fulaninho (vamos chamá-lo assim) é realmente infantil. Ele tem esse problema”.
Agora me expliquem. Onde cabe a categoria infantil aí? Uma criança não costuma trair, muito pelo contrário. E crianças têm dificuldade em sustentar mentiras, pelo menos as que eu conheço. E, o principal, “fulaninho” é um homem crescido, já de meia idade, e chamar de infantil é de um eufemismo quase cômico.
Nunca vi ninguém falar de mulher que trai: ela é infantil. Então vamos combinar que há uma lenda social que coloca esses machos babacas numa categoria especial – o homem infantil. Uma lenda antiga que serve para toda e qualquer situação em que um sujeito com p… faz algo inaceitável. Essa lenda se revela de formas variadas e é narrada de maneiras diversas também. É o sujeito que não amadureceu, o que tem síndrome de Peter Pan, o eterno adolescente, o cara que faz as “aprontações” dele, aquele que é completamente sem noção de limites e se torna uma figura anedótica e quase idolatrada entre os pares.
Hora de acordar… Essa “maturidade” é algo que, se não se conquistou até os 25, máximo trinta anos (já acho muito), é que provavelmente não tem a ver com idade.
Infantil é alguém que, já adulto, gosta de chupar chupeta ou cuidar de boneca, talvez. Um homem que passa por cima dos sentimentos alheios, está mesmo dentro dessa categoria? Se uma mulher comete uma atitude, ela é sempre responsabilizada. Sempre. Se ela traiu, se ludibriou, qualquer ato que tenha feito. Até uma distração. Ninguém argumenta: “Ah, mas é que ela é muito imatura… Muito infantil, sabe? Ela faz essas coisas, é o jeito dela…”.
Em compensação, quantas coisas horríveis e covardes cometidas por homens eu já vi entrarem nessa categoria. Homem infantil. Uma lenda criada e cultivada por todos nós, mulheres e homens.
Vamos dar nome aos bois. Não existe homem infantil. Existe homem abusado, folgado, egoísta, infiel, canalha, onipotente, mau caráter, irresponsável, individualista, autocentrado, inconsequente, preguiçoso, desleal…
O “fulaninho” seguiu a mesma linha do amigo dele, quando mandou uma mensagem tentando resgatar a relação com a minha amiga: “Me perdoa, sei que fui fraco e moleque…”. Bom, a pessoa devasta o emocional de alguém e depois chama suas atitudes de fraqueza e molecagem. Já mostra que não entendeu o básico: a gravidade dos seus atos. Não se responsabiliza por nada que fez. Ele, segundo o seu próprio discurso, nada mais é do que um homem infantil. Coitado. Ele é fraco, não cresceu, não tem limites, não mede consequências, é bobo, não tem controle sobre seus próprios atos. É um moleque. E, poxa, moleque não sabe o que faz e, por isso, pode tudo. É ou não é?
“Fulaninho” não é infantil. Estava jogando um jogo até bastante adulto. Soube iludir, seduzir, dissimular, mentir, omitir, criar histórias completas que jamais existiram, se esquivar de diversas situações onde poderia ter sido colocado contra a parede ou exposto de alguma forma, criar dúvidas, inseguranças e até angústias quando lhe convinha, silenciar e sumir quando achava mais estratégico. Conduziu as situações com a maestria e esperteza de um jogador experiente e vivido. Tanto é que demorou anos para ser descoberto. Portanto, não há nada de “mirim” em suas atitudes. “Fulaninho” é, sim, responsável por tudo que fez e por todo o dano que causou a todas as envolvidas… Mas ele é também (o que apenas explica, mas de forma alguma justifica ou atenua seus atos) mais um sintoma de uma sociedade machista que “passa pano” para sujeitos sem escrúpulos que causam estragos profundos das formas mais diversas.
O “macho alfa” em questão, o tal “fulaninho”, pela primeira vez em sua vida de canalha foi desmascarado e sofreu algumas consequências. Não se sabe se está muito preocupado com isso. Há muitas formas de ser “infantil” novamente. Oportunidades não lhe faltarão. Certamente ele conta com a chancela e talvez até o aplauso silencioso (ou não silencioso) de muitos amigos, e tudo indica, nesse caso específico, até com a cumplicidade da família, que parece não se alarmar e nem se incomodar com tamanha “infantilidade”. E nós seguimos em frente, repletos de machismo estrutural.
O que se espera da minha amiga? Que ela deixe tudo para trás e siga em frente. Tem que encarar como livramento, pensar que podia ser pior… É o que todos dizem, inclusive eu. Tem que se manter firme e ficar bem sozinha. Quem sabe um dia ela encontre um homem que não seja “imaturo”? Torço por ela e por todas nós. Seria mais provável se não houvesse socialmente um terreno tão fértil para que diversas crueldades revestidas de fraqueza acontecessem. Seguimos lutando e buscando esvaziar a força e o poder desses “machos” que não têm a menor hombridade.