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Apagão

"Se você reler tudo que guarda, vai ver que tudo é deletável nesta vida. A começar pela própria vida". Leia na crônica de Manoel Carlos

Por Daniela Pessoa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 Maio 2018, 07h00 - Publicado em 25 Maio 2018, 07h00
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  • Minha memória anda falhando. Aqui e ali, me dá um susto e instala um apagão na minha cabeça. Alguns amigos também se queixam disso, mas se preocupam menos, debitando esses lapsos ao cansaço momentâneo, mas puxado (ou vice-versa), de escrever uma novela. Não deixam de ter razão: afinal, esse apagão e a preocupação que provoca logo desaparecem, substituídos por uma dorzinha de cabeça enjoada, que acaba sumindo também.

    Alguns me aconselham a deletar tudo que lota minha caixa postal. Acham que tenho arquivos demais, que não estou apagando nada, só recebendo, recebendo… e o lixo vai crescendo, chegando a um volume maior do que aquele que é ocupado pelas mensagens recebidas e enviadas.

    Concordo com eles. Se você reler tudo que guarda, vai ver que tudo é deletável nesta vida. A começar pela própria vida, tão longa para quem sofre, tão curta para quem é feliz. Tudo cabe debaixo do tapete, é só empurrar bem. Tudo vai por escada abaixo, mais dia, menos dia.

    Depois de todo esse discurso, que na hora me pareceu histórico, olho para alguns dos amigos ali reunidos. E aí então ouço a voz do Raul, que está chegando ao café:

    — Não tem com que se preocupar. Está tudo na nuvem!

    Pergunto com certo espanto, exibindo toda a minha ignorância cibernética:

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    — Como pode caber tanta coisa numa nuvem? O que é essa nuvem?

    Mas o assunto já mudou, e eu fico sem resposta. Ao contrário disso, todos enveredaram por outros temas, mostrando a volatilidade de tudo que falamos. Para a curiosidade dos leitores, seguem retalhos do que foi conversado:

    — Todo mundo tem uma explicação para tudo. Até mesmo para o inexplicável.

    — Tudo na vida vem acompanhado de uma bula. Afinal, não existiria a dor de cabeça se não existisse a aspirina.

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    — Uma pessoa pode ser louca e não ser maluca.

    — A maluquice é a desordem que se instala em nossa cabeça quando enlouquecemos.

    — Rico fica demente, pobre fica maluco.

    E por aí fomos, cada um dizendo qualquer coisa que lhe viesse à cabeça.

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    Durante o jantar, minha mulher é objetiva:

    — Você está preocupado com o Alzheimer. Desde que o Rubens foi diagnosticado com a doença, você ficou assim. Não só você, mas toda a sua turma do Café Severino. Dá para entender. São todos praticamente da mesma idade.

    — O Jurandir só tem 82.

    Iraneide, a Iran, que trabalha na nossa casa há quase vinte anos, ouviu o que falávamos e nada comentou, mas na manhã seguinte, ao me ver parado, olhos fixos na tela vazia do computador, ficou preocupada com a minha “ausência”.

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    — Não se preocupe não. Eu tenho essa súbita falta de memória, essa ausência que o senhor fala. Não dou bola. Me viro. Hoje, por exemplo, não consegui pedir ao verdureiro que me mandasse berinjela, que dona Bety está louca para comer, mas não consegui.

    — Bem, e daí?

    — Comprei pepino. Dona Bety nem notou.

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