Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Quem não se lembra desses versos de Ivan Lins, que abriam a série Malu Mulher, na bela voz da Simone? Eu me lembro. E com saudade! Escrevi sete episódios, que estão entre os que aparecem nos dois DVDs lançados pela Globo. São eles: “Com unhas e dentes”, “Até sangrar”, “Duas vezes mulher”,
“Antes dos 40”, “Depois dos 30”, “Solidão: feminino plural”, “O Coração pela boca” e “O silêncio de Deus”. Nesta semana, revi todos em casa, na companhia da minha mulher, e me senti feliz. Sim, feliz de ter participado de um trabalho tão inovador e inspirado, antenado com as inquietações da época (1979-1980). Algumas vezes profético, já revelando reformas, tendências, ideias e caminhos que só foram percorridos anos depois. E, mais do que tudo, a inquietação das mulheres naquele momento que se abria, como a porta de uma catedral, a quem tivesse olhos para olhar. Mais que olhar, ver. Sim, porque uma coisa é olhar, outra bem diferente é ver. Olha-se qualquer coisa, não é? Mas enxergam-se poucas. Picasso fala algumas vezes sobre essa diferença.
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras, sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Lendo esses versos agora, desacompanhados da imagem da Malu e da moldura da televisão, que, assim como enriquece, muitas vezes empobrece as palavras, percebo como o poema é bonito, bem construído e forte. Um vigoroso poema de amor. E havia uma harmonia perfeita entre os valores que estavam em questão. Os valores que arrebatariam a mulher dos anos 80. E, acima de tudo, o grito de liberdade, de gritar a sua independência. A falência da submissão.
Como palavra puxa palavra e assunto puxa assunto, ainda que possam, na hora, causar certa estranheza, a releitura da edição em livro de uma entrevista histórica de Susan Sontag na revista Rolling Stone, em 1979, me fez viajar e fechar os olhos para ver melhor. A escritora confessa a fantasia persistente de poder “jogar tudo para o alto e começar do zero, usando um pseudônimo que ninguém relacionaria a Susan Sontag. Eu adoraria fazer isso, seria maravilhoso começar de novo”.
E, como em toda história de amor, o começo e o fim de uma ligação sempre guardam alguma semelhança entre si. Malu conseguiu ser outra pessoa. Susan ficou na vontade.
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido.
Para encerrar, um viva também a Ivan Lins e outro a Regina Duarte. Afinal, lembrar é a arte de não esquecer.