Quando eu e minhas irmãs, ainda crianças, passávamos temporadas na casa da minha avó portuguesa, mãe do meu pai, meu avô já não vivia e essa minha avó já era velha. A conversa com os netos, hóspedes provisórios, ficava a cargo de duas tias solteironas, gordas e bonitas.
Chamávamos essa casa de colégio interno, já que a disciplina por lá era rígida. Os pitos (que era como se chamavam essas conversas) acabavam sempre em palmadas ou castigos específicos, sendo que, no meu caso, os dois se aplicavam. Entre esses o mais temido era o de ficar sem a sobremesa no jantar.
O ritual era simples: as tias, ora uma, ora outra, chamavam o culpado ao quarto, fechavam a porta e repetiam um discurso punitivo. Durante essa falação, baixávamos a cabeça, contritos, pedíamos desculpas e prometíamos não repetir as faltas.
Já na nossa casa, onde morávamos com os nossos pais e na companhia da outra avó, a de coração de manteiga, mãe da minha mãe, o ritual era diferente. E brando. Vó Leonor queixava-se, mais do que censurava. E essa operação realizava-se sempre enquanto ela penteava minhas duas irmãs, colocando grampos em seus cabelos. Pedia a uma delas:
— Sente-se aqui, queridinha.
Chamávamos a esse momento de “a hora dos grampos”. E eu, então, o único menino da casa, esgueirava-me pelos cantos da sala e desaparecia. Mas não ia longe. Quase sempre ficava atrás da porta semiaberta para escutar o que falavam. E de lá ouvia coisas como:
— Fiquei sabendo que você, na matinê do Rialto, sentou-se ao lado do Chiquinho. Sozinha com ele no escuro do cinema.
— Mas vó — protestava a neta culpada. — Eu não estava sozinha!
— Você foi ao cinema com sua irmã, eu sei, mas pediu que ela sentasse num outro lugar, longe de você.
Minha irmã mais velha fechava a cara e os olhos faiscavam, podendo-se ver a raiva que sentia da nossa irmã mais nova, que ela sabia ser a autora da denúncia. Depois passava por ela e dizia entredentes:
— Traidora. Você me paga!
E podia-se ouvir, mais tarde, as duas brigando no quarto, entre empurrões e puxões de cabelo. Não mais do que isso.
Quando era comigo, o sermão acontecia durante a sessão de limpeza de dentes e orelhas. E o corte das unhas.
— Como é que você teve coragem de pôr fogo no rabo do gato do vizinho?
— Não foi no rabo, vó, foi no cordão que a gente amarrou no rabo dele — dizia eu, certo de que a explicação me absolveria.
— E que acabou queimando o pobre bichano. Que maldade! Você sabe que o Menino Jesus não gosta de crianças que judiam dos bichinhos de Deus?
Eu baixava os olhos, arrependido sim, devo dizer, mas louco para sair dali e aprontar mais alguma. E, como tudo que eu aprontava era na rua, em companhia dos meus companheiros, que formávamos como um bando de pequenos delinquentes, o meu castigo era sempre o mesmo: ficar apenas de cueca — e às vezes sem ela — na janela do quarto, olhando a tão desejada rua. Minha avó escondia as minhas calças, impedindo-me de sair.
Essa era a parte dos grampos, numa época em que a palavra não se ligava às escutas telefônicas de hoje, mas apenas aos ganchinhos de metal usados para prender os cabelos femininos.
Mas outra conversa acontecia, essa entre adultos, e que nós, crianças, também ficávamos ouvindo atrás da porta. Era quando minha avó e minha mãe bordavam, uma de frente para a outra.
Minha mãe falava. E eram, quase sempre, queixas do meu pai. Do seu descaso por ela, principalmente. Não entendíamos tudo, na nossa pouca idade e total inexperiência, mas, como minha mãe — também quase sempre — chorava, concluíamos que ela estava magoada e cheia de razão.
A essas sessões terapêuticas entre nossa mãe e a mãe dela chamávamos de “a hora do bordado”. Mais tarde, já adulto, compreendi que era, no fundo, a hora da verdade, em que o mundo feliz e sonhador da minha pobre mãe, ao lado do meu pai que não sonhava, começava a desmoronar para sempre. Custei a aceitar a ideia de que minha mãe era infeliz.
Quando morreram, ele em 1990, com 88 anos; ela em 1992, com 92 anos, assistiam à televisão de mãos dadas, dando a impressão de terem vivido em permanente lua de mel.