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Lembrar

"Algumas pessoas pensam que a melhor coisa a fazer quando não temos o que fazer é não fazer nada". Leia na crônica de Manoel Carlos

Por Manoel Carlos
Atualizado em 30 abr 2018, 11h00 - Publicado em 30 abr 2018, 11h00
 (Leo Martins/Veja Rio)
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Algumas pessoas pensam que a melhor coisa a fazer quando não temos o que fazer é não fazer nada. Sentar-se numa praça e ficar olhando as crianças correndo atrás dos pombos é uma alternativa, sempre será, assim como quedar-se diante de dois velhos e ficar olhando com fingido interesse um emocionante jogo de dominó. São cenas que nos alcançam na memória, como se nos dissessem “a vida é isso, não dá para escapar. Lembrar tem um preço. Às vezes alto demais”. Já sentiram isso?

Estávamos no Café Severino, aborrecidos e emburrecidos diante dessas pobres alternativas, quando me lembrei de uma brincadeira do tempo do internato. Consistia em confessar alguma coisa íntima que tivéssemos vivido e que não gostaríamos de ver repetida.

A Flávia se adiantou. Confessou que uma vez, com 15 anos, depois de desembrulhar uma bala, olhou para os lados, não se sentiu policiada e atirou o papel na rua, pela janela do carro. Um carro que vinha atrás emparelhou e do seu interior um belo rapaz, olhando fixamente em seus olhos, disse em voz clara e sonora: “Porca!”.

Ficamos mudos por um tempo. Não esperávamos essa cena descrita assim, com uma emoção desmedida. Trocamos alguns olhares e voltamos nossa atenção para a amiga. Tal como imaginávamos, Flávia estava com lágrimas nos olhos.

— Me desculpem — disse —, mas não pude resistir e quis contar, dividir com vocês essa lembrança vergonhosa. Uma vergonha que eu carrego há muitos anos.

Fez uma pausa e pareceu que continuaria a história… Ledo engano. A história era aquela mesma, e ela não podia mudar uma só linha. Levantou-se e saiu discretamente. Um tempo de silêncio, e pedimos mais uma garrafa de vinho e uma rodada de queijo.

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Logo surgiram os comentários inevitáveis:

— Chamar a garota de porca foi demais. Podia dizer outra coisa qualquer, como “Seu pai não te deu educação, não?”.

— Também acho. Podia criticar, mas não apelar desse jeito. Afinal era uma garota, uma mocinha, tinha mesmo de ficar com vergonha. “Porca!” foi demais.

— Ela contou com uma emoção, como se tivesse sido ontem.

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— Até chorou! Fiquei com pena.

— Mas também que raio de brincadeira você inventou!

— A culpa é minha? — perguntei. — Vocês nunca fizeram o jogo da verdade?

— Ah, essa não, pelo amor de Deus. Mundo-cão, não!

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— Será que ela foi pra casa direto?

— Ela estava emocionada, mas tem a cabeça no lugar!

— Não tem tanto, não, já chorou muito por causa de um pilantra que aprontou pra cima dela.

— Isso faz muito tempo!

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— Não mais do que a história que ela contou, e até chorou.

— Vamos levantar um brinde à nossa amiga.

Cheguei em casa, contei a minha mulher o saldo da noite.

— Vocês são impiedosos!

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— Mas o que é que nós fizemos?

— Essas brincadeiras nunca dão certo.

— Como é que eu ia imaginar que uma brincadeira tão juvenil ia mexer com o coração dela?

— Vamos pra cama dormir. Amanhã vai estar tudo bem.

No dia seguinte, Flávia mandou flores para todos nós. Mais uma vez desculpando-se da emoção sentida.

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