Matérias de jornal e televisão têm mostrado que não foi pequeno o número de pessoas que aderiram ao consumo on-line e mantiveram o hábito de fazer compras, mesmo durante a pandemia. Não me refiro aos itens de primeira necessidade, como alimentos, mas sim ao que pode ser denominado como supérfluos – ainda mais em tempo de isolamento social: bolsas, sapatos, roupas e maquiagem tiveram um boom de venda, especialmente no mercado de luxo, por parte da parcela da população que pode se permitir tais gastos. Segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), as vendas on-line saltaram de 9%, antes da pandemia, para 21% em junho de 2021.
Mesmo atravessando um momento de crise no país, com alto desemprego e economia instável, o ato de comprar serviu como válvula de escape, tentativa de afastamento do tédio e até como promessa de volta à normalidade: “tão logo seja possível socializar novamente, vou usar essa ou aquela peça”, pensaram alguns, numa lógica que mistura autoengano com autoindulgência.
Na outra ponta, está o movimento contrário. O coronavírus forçou a parar e a pensar não apenas nos hábitos de compras, mas também na vida que cada um estava levando. Muita gente descobriu que estava vivendo em desacordo com a sua essência. Trancadas em casa, aproveitaram para rever o que tinham em casa e reavaliar a real necessidade das peças. Na maioria dos casos, descobriram que tinham coisas demais. O volume de doações foi enorme e os sites de compra e venda de peças de segunda mão viveram uma explosão. Os “desapegados” afirmam que, como diz a música do Roberto Carlos, “daqui pra frente tudo vai ser diferente”: o consumo consciente deixou de ser uma ideia vaga para se tornar algo concreto no dia a dia, com menos e melhores compras.
O fato é que no mundo pré-pandemia vivíamos numa montanha-russa de consumo desenfreado. O número de pessoas endividadas no cartão de crédito ou no crédito consignado era enorme, uma verdadeira bola de neve num ciclo difícil de ser rompido. Há uma tendência em se perdoar a postura de compradores compulsivos, ou até romantizá-las, como chegou a fazer a série “Sex and the city”. Mas a verdade é que, embora não haja consenso sobre isso, a adicção por compra pode ser uma doença, que precisa de tratamento e acompanhamento psiquiátrico.
Artigo recentemente publicado no Journal of Behavioral Science propôs alguns critérios para diagnóstico do transtorno por compras compulsivas: desejo, impulsos, urgência ou preocupação irresistível em comprar; pouco controle sobre o consumo; adquirir itens excessivos e não utilizá-los; fazer compras para regular desconfortos emocionais e que acabam prejudicando áreas importantes da vida e, por fim, sintomas de abstinência quando reduz o consumo. É importante ressaltar que nem todos os critérios precisam ser atendidos para que a compulsão por compras seja diagnosticada.
Para quem é vítima das compras por impulso, há algumas perguntas que podem ser feitas para se medir a real necessidade do gasto. Eu preciso desse produto neste momento? Eu devo comprar esse produto agora? Eu posso pagar por essa compra sem me endividar? Este dinheiro não poderá me fazer falta em uma situação de emergência? Essa compra irá me fazer feliz por um longo período ou só irá me satisfazer no ato da compra? Responder mentalmente a estas questões esvazia a impulsividade da compra porque racionaliza o uso do dinheiro. E, sem dúvida, uma das principais lições da pandemia é que o dinheiro ganhou outro valor.
Há um vídeo que circula na internet de um lindo depoimento do ex-presidente uruguaio falando, com precisão e clareza, sobre esse assunto. “Inventamos uma montanha de consumo supérfluo. Compra-se e descarta-se. Mas o que se gasta é tempo de vida. Porque quando eu ou você compramos alguma coisa, não pagamos com dinheiro, pagamos com tempo de vida que gastamos para ter esse dinheiro. Mas tem um detalhe: a única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta. E é lamentável desperdiçar a vida para perder a liberdade.”
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.