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Manual de Sobrevivência no século XXI

Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Psiquiatria
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Aulas na quarentena: conciliando trabalho com o papel de professora

Neste momento não precisamos de mini gênios da tabela periódica, mas uma geração que entenda a importância do coletivo

Por Sabrina Presman
Atualizado em 22 abr 2020, 17h03 - Publicado em 22 abr 2020, 11h07
Educar é ensinar a falar dos medos, dores, ansiedades e dúvidas. (Victoria Borodinova by Pixabay/Reprodução)
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Do dia para a noite as aulas foram suspensas com a informação que as férias de julho seriam antecipadas. Depois de duas semanas bastante atribuladas me dividindo numa nova rotina de crianças em casa, trabalho em dobro para proteger pacientes e colaboradores do vírus além das intermináveis tarefas de higienizar tudo o tempo todo. Ainda sem saber ao certo como será daqui pra frente, recebo o aviso de que as aulas dos meus filhos retornaram através da metodologia online e que nós pais devemos acompanhá-los. Como fazer isso e dar conta de tudo?

Decido faltar o trabalho no primeiro dia de aula para dar suporte, entender como seria a dinâmica que a escola estava propondo e assim ajudar nessa transição. Não posso cuidar dos filhos dos outros e arriscar deixar os meus de lado. Sem nenhuma auto compaixão, me exijo, além de tudo, coerência. Tenho que dar conta.

Nos primeiros minutos de aula, assisti professores num esforço visível, mas ainda sem intimidade com a ferramenta, se equilibrando entre desvendar o compartilhamento de tela com os alunos e a descoberta que o aplicativo fica lento com todas as câmeras e microfones ligados. Enquanto, o professor suava frio para dar conta da missão, as crianças brincavam pelo chat com figurinhas, bate papos e fazendo graça pelo microfone. Foi gostoso de ver, saudades do barulho de crianças se divertindo , numa casa que nunca esteve tão silenciosa como nos últimos dias.

Esperançosa, aguardava a aula aliviada em dividir com a escola o peso que estava só comigo, de ajudá-los a entender o que está acontecendo no mundo. Respirei fundo, pensando sobre os benefícios que seria para eles poderem se expressar e ouvir os amigos, cada um com seus medos e angústias. A bagunça das crianças, depois de tantos dias sem interação , não agradou aos professores, aos pais e nem a própria coordenadora, que entrava no chat para chamar a atenção e explicar as regras, repetidas diversas vezes. Pensei comigo: será que tínhamos que ser tão críticas? Talvez fosse justo com eles deixar eles se familiarizarem com a ferramenta do jeito e no ritmo deles.

A aula seguiu e ainda hoje não sei descrever o que senti: perplexidade, tristeza, medo, constrangimento, frustração. Acho que tudo junto. Todas as turmas da série, conectadas na mesma aula, quase 80 alunos no ambiente online. Nos minutos iniciais, após uma surra bem dada pela nova ferramenta, o professor perguntou qual era a expectativa para as aulas online. Foi assim, tanto na turma do meu filho como da minha filha, exatamente igual, me levando a entender que era a orientação da escola. Fiquei até aliviada e grata, por alguns minutos, tive certeza que é um excelente passo para que as crianças ressignifiquem e consigam construir uma nova percepção sobre aprendizagem.

Só que o que aconteceu a partir daí foi impactante. Depois da pergunta inicial houve espaço para duas ou três respostas em cada turma. Me peguei refletindo sobre o que cada um disse. “Espero que seja exatamente igual às aulas presenciais”, disse um aluno, com uma expectativa impossível de ser atendida. Outro não escondeu o jogo: disse que seria chato e que estava ali por obrigação. Ainda ouvi que “não via sentido em aula no meio da pandemia”.

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Muita coisa ali para ser dita e ouvida. Tantas formas de ajudá-los a lidar com tudo aquilo, mas ambos professores cortaram os alunos, poucos minutos após dar a palavra para as crianças dando respostas similares: não podemos controlar o que está acontecendo então vamos rezar para que isso passe logo. E ali, naquele minuto, eu rezei para que a aula terminasse.

Não me entendam mal. Acredito que fé é sim um valor importante para ser estimulado nas crianças. Mas é uma construção que só faz sentido se as empodera de suas escolhas e não as eximi de responsabilidades. Menos de 5% dos alunos da turma tiveram a chance de se expressar, não ocupando mais do que seis minutos de aula. Ouvi um dos professores falando que com as dificuldades iniciais de conexão, já tinha perdido muito tempo de aula e precisava correr. E eu me pergunto, vamos correr pra que?

As aulas iniciais foram Educação Física e História. Vibrei com a possibilidade de eles poderem discutir sobre a interrupção abrupta dos jogos e partidas esportivas e da rotina de cada um. Aqui em casa impactou muito: uma kareteca que treinava todo dia, jogava vôlei e ia à academia e outro que tinha treinos com personal trainer, variando de atividades como bicicleta, skate , circuito. Em casa sem sair, tem sido um desafio não se tornarem sedentários, o que acaba sendo um fator de risco para a saúde física e mental. Então, que bom, penso eu, que eles vão falar de estratégias e quem sabe os amigos compartilham algo que os motiva. Mas ao invés disso o que os acontece é uma aula sobre a teoria do vôlei (!), apresentando as medidas de uma quadra, as regras, a confederação. Questiono e meus filhos me explicam que vôlei era a matéria que eles pararam semanas antes. Como voltar ao ponto onde as aulas foram interrompidas se essa realidade não existe mais?

Na aula de História, torço pela oportunidade de discutirem a História das epidemias ao longo do tempo e sob uma perspectiva positiva, descobrirem que a gente se reinventa e sobrevive. Mas ao invés disso, seguimos na revisão do conteúdo da prova que o professor mesmo diz que não sabe quando será. E cada professor continua de onde parou como se nada tivesse acontecendo na vida de cada um de nós, inclusive na deles.

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Conversei com amigas e todas dizem que estão passando pela mesma situação. Consigo me colocar no lugar das escolas. Não é uma crítica direcionada especificamente aos colégios. As instituição estão pressionadas por um calendário letivo a cumprir, uma resposta de produtividade aos pais, que não veem sentido em continuar pagando a mensalidade e simplesmente estão correndo atrás do que acreditam diminuir o prejuízo ao conteúdo programático. Tampouco é uma crítica aos professores, submetidos a um estresse absurdo, trabalhando mais para dar conta, do dia para noite, de uma metodologia que eles desconheciam e não necessariamente tem essa habilidade só para não atrasar um conteúdo. Que impacto tão grande pode ter esse tal atraso que nos faz acreditar que precisamos correr?

Penso em tanta coisa que esse professor, assim como eu que sou profissional da saúde, teve que abrir mão para estar ali dando tudo de si para que as crianças tenham uma sensação de normalidade e controle. Como não é permitido àquele profissional algo tão simples: sentir. Duvido que a vida pessoal e familiar dele não esteja de cabeça para baixo. Mas ele tem que produzir. Mas no meio ao caos, que sentido tem fingir que tudo segue como antes? Será que não sentir é a lição que quero que os meus filhos aprendam na escola?

Será que vamos sobreviver a essa pandemia sem sequelas absurdas na nossa saúde mental e na dos nossos filhos se continuarmos investindo em uma cultura que o mundo ao redor está desabando, mas a gente tem prazos, metas e cronogramas para dar conta. Será que realmente acreditamos que antes de entenderem o que está acontecendo e se familiarizarem com esse novo ambiente online, nossos filhos vão conseguir absorver algum conteúdo formal?

Será correto submeter pais, já sobrecarregados e pressionados por todas as novas tarefas e dores da vida cotidiana, a adaptar os filhos à educação domiciliar? Quantos de nós perderemos a paciência ?

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E as crianças? Faz sentido que o futuro da nossa sociedade seja educado através de premissas do passado? Eles estarão realmente preparados para o mundo do futuro? E o presente? Mindfulness está tão na moda, mas não suportamos deixá-los viver no presente?

O que eu vi na volta às aulas foi uma total negação do que estamos vivendo. Não só os alunos, mas também professores e pais. Não fui chamada para uma reunião virtual com a finalidade de falarmos sobre como a nossa comunidade escolar vai sobreviver a isso tudo. Adoraria que aquelas crianças, ao invés de terem as orelhas puxadas por bagunçar o ambiente de sala de aula virtual, tivessem a oportunidade de ouvir o relato dos professores de como estava sendo tudo aquilo para eles. Quem sabe, se desenvolverem empatia sairão dessa olhando menos para o próprio umbigo.

Quero que meus filhos entendam a responsabilidade e papel deles na mudança que acontecerá no mundo. Vamos rezar sim, mas os valores de qualquer crença só fazem sentido pra mim se vierem em conjunto com ações concretas. Viver na prática o que se prega e, para isso, não adianta correr para ler capítulos e mais capítulos de diversos assuntos que contribuem no conhecimento formal desses indivíduos. Neste momento não precisamos de mini gênios que sabem a tabela periódica, mas sim formar uma geração que entenda a importância de abrir mão do individual pelo coletivo, que desenvolve resiliência para se adaptar às adversidades e aprende a trazer para si a construção do mundo.

Defendemos todo o tempo que temos que buscar a construção de novas relações e estar próximos mesmo se distantes fisicamente mas, no final das contas, quando eles tentam interagir durante a aula isso é visto como inadequado. Quero que meus filhos tenham aula justamente sobre isso e, junto com o professor, percorram essa descoberta de um novo se relacionar. Quero alfabetização emocional para os nossos filhos, para que tenham seus medos e emoções validadas.

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Ainda não entendemos que educar é também ter compaixão pelo outro e por si mesmo, é ensinar a ser você mesmo com qualidades e defeitos, ensinar sim a falar dos medos, dores, ansiedades e dúvidas. Porque se estamos preocupados apenas em criar adultos bem sucedidos, foi-se o tempo que isso era sinônimo de diploma. Ser bem sucedido hoje é tão mais do que isso. E quero fazer a minha parte, não invalidando meus sentimentos e frustrações com tudo isso, ensinando aos meus filhos, através do exemplo, que podemos sim expressar discordância sem necessariamente julgar o outro.

Todos estamos vivendo batalhas duras e árduas. Seguramente meu problema não é maior nem pior que do outro. Mas, no fim do dia, gostaria que meus filhos deixassem o dever de casa de matemática ou geografia e fossem educados sobre gratidão.

Sim, é verdade, filho. Sei que você está sofrendo sem a vida que você conhecia. Mas olhe para o lado. Estamos juntos, saudáveis, com comida e um teto. Não nos falta o mais importante. E isso eu queria que eles aprendessem na aula online, presencial, no recreio ou através do meu olhar. Ser grato com o que se tem, ao invés de olhar para o que falta. Entender que quando ajudamos alguém somos, às vezes, mais ajudados do que o outro.

O sentido e propósito da educação não pode ser completar livros e exercícios. Não quero livros preenchidos com o custo de lacunas emocionais. Quer saber o que mais? Eu estou com medo. Não de contrair Covid-19, mas de gastar a energia que ainda tenho cobrando deveres e tarefas, tentando me enquadrar em um modelo de mãe que eu não sou. Que todo esse caos nos faça valorizar o que cada um de nós tem para contribuir

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