O alerta partiu do secretário de saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn: “Estamos em guerra. Diferente das guerras que nós costumamos ver nos filmes, que nossas gerações não viveram, com tiros, bombas e mortos espalhados pelas ruas. Nós temos isso acontecendo nos hospitais”. O desabafo aconteceu na semana passada, no momento em que o Estado de São Paulo comunicava a superlotação dos hospitais por casos de Covid-19 e o secretário Gorinchteyn clamava o auxílio de voluntários aos Conselhos Regionais de Medicina, Fisioterapia e de Enfermagem. “Nós precisamos de ajuda porque estamos em guerra”, repetiu.
Ontem, batemos o recorde de 2.349 mortes em um único dia e a quantidade de profissionais de saúde disponíveis no front para a batalha contra a Covid é inversamente proporcional aos novos casos que surgem no país. Depois de um ano de trabalho incessante, muitos começam a faltar aos plantões por absoluto esgotamento, físico e mental. A mídia exibe reiteradamente o apelo de médicos e enfermeiros, muitas vezes aos prantos depois de plantões de até 14 horas em UTIs, pedindo que as pessoas fiquem em casa e se preservem de contrair o vírus. Uma emissora de TV mostrou esta semana uma enfermeira que passou 16 horas administrando 40 leitos de pacientes.
Até janeiro deste ano, 508 profissionais de enfermagem tinham morrido de Covid no Brasil. Um dos casos mais emblemáticos foi da enfermeira Daniele Costa, da UPA de Nova Iguaçu, que morreu nove dias depois de gravar um vídeo apelando às pessoas para que ficassem em casa. Segundo a Anistia Internacional, a pandemia matou 17 mil profissionais de saúde em todo o mundo, em 2020. De acordo com o documento, a cada 30 minutos um de nós perdeu a vida para a Covid-19. Neste cenário desolador, quem cuida de quem cuida?
Profissionais de saúde são preparados para perder pacientes. Em um ofício que arbitra entre a vida e a morte, assistir este embate faz parte do jogo e quem escolhe essa profissão sabe disso. No entanto, nenhum médico ou enfermeira é treinado para assistir a morte de pacientes por falta de condições mínimas de trabalho: leito, respirador, equipamentos, mão de obra. Não cabe a um profissional de saúde escolher entre quem vai viver e quem vai morrer. Nosso juramento é salvar a todos. E na crueldade deste dia a dia, alguns colegas, compreensivelmente, tem sucumbido.
A Medicina tem alguns inimigos na dura guerra contra a pandemia, mas nenhum é tão letal e perverso como o negacionismo às evidências científicas. Desdenhar da importância do uso da máscara, debochar do isolamento social e ridicularizar a vacina, mais que atestados de ignorância, são gestos de desrespeito com quem está dando a vida – literalmente – para salvar os outros.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.