Manual de Sobrevivência no século XXI

Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Psiquiatria
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“Será que vale a pena se dedicar?”

Questionamento de atleta brasileiro eliminado em Tóquio nos faz pensar sobre as escolhas da vida

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 4 ago 2021, 12h03 - Publicado em 4 ago 2021, 08h44
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  • Tão logo foi eliminado na bateria eliminatória dos três mil metros com obstáculos ao chegar em décimo lugar no primeiro dia de disputas do atletismo nas Olimpíadas de Tóquio, o brasileiro Altobeli Silva encontrou os microfones da imprensa à sua espera. Ainda com o suor escorrendo pelo rosto, embalado pela decepção, o atleta começou a realizar sua derrota, tentando achar explicações.

    “Estou me sentindo muito mal. Chateado, porque eu sei o quanto eu treinei, o quanto batalhei, o quanto abri mão. É uma frustração muito grande, porque quando você não treina, não se dedica, dá “migué”, vai para festinha , é uma coisa. Mas quando você abre mão de tudo isso, se isola, espera um ótimo resultado e acontece o que aconteceu, eu sinceramente fico sem entender”, disse ele, emocionado.

    A surpresa da eliminação do atleta paulista se justifica por sua trajetória ascendente. Altobeli foi finalista nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, e faturou a medalha de ouro no Pan de Lima 2019. O atleta seguiu com seu raciocínio para a imprensa: “Eu merecia classificar porque eu treinei pra ca****. Eu não sei o que aconteceu, porque eu endureci minhas pernas. Eu fiz os melhores treinos da minha vida! Rio 2016 eu fui finalista e não treinava o que treinava agora. Me dediquei pra caramba!”. Neste ponto, talvez pela força da emoção ou pelo turbilhão de pensamentos que devem tê-lo assolado, Altobeli lançou a fatídica pergunta: “É uma decepção muito grande. A ponto de você analisar: será que vale a pena se dedicar?”

    A pergunta que Altobeli Silva se fez, em alto e bom som, deve ter ecoado em muita gente. “Será que vale a pena se dedicar?”. É um questionamento que, em algum momento da vida, todos nós nos fazemos, seja a respeito do trabalho, da vida amorosa ou familiar. Como saber até onde persistir? Invertendo o sentido da mesma questão: existe hora certa para desistir?

    Existem algumas medidas para se saber até onde persistir em alguma coisa na vida. A primeira delas é o sofrimento. A partir do momento em que uma livre escolha feita no passado, com a melhor das intenções, traz sofrimento no presente é hora de parar e pensar se persistir neste caminho é uma decisão acertada.

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    Outro fator a ser considerado é se a única razão para você ainda não ter desistido é porque você está preocupado com o que os outros vão falar. Não se pode sacrificar a própria vida para fazer os outros felizes. Também não podem ser ignorados os casos em que a insistência em um caminho – uma carreira, um casamento, um negócio – blinda novas possibilidades. Um bom exemplo é Bernardinho. Bom jogador nos anos 80, reconhecido por prêmios e conquistas, ele se converteu em uma figura histórica do vôlei mundial ao se arriscar como técnico.

    A decepção de Altobeli é compreensível, dado todo seu esforço, mas ignora um aspecto fundamental: muitos atletas – a maioria! – também voltarão para casa sem medalhas. Competir é isso. Chances de ganhar, chances de perder. No nível de alto desempenho implícito em uma Olimpíada, esta regra se torna ainda mais certeira.

    Pela régua de Altobeli, a medida de perdedor e vencedor é muito rígida e, inevitavelmente, cruel. Simone Biles desistiu de competir e é uma faz heroínas dos Jogos de Tóquio, pela lição que deu ao mundo de respeito à saúde mental. Indo mais longe na história, a suíça Gabrielle Andersen deu uma aula de fairplay nos Jogos de Los Angeles, em 1984, ao insistir em terminar o percurso, mal se aguentando em pé. Um verdadeiro símbolo do espírito olímpico que entrou para a história. Quanto ao vencedor da medalha de ouro naquela prova ninguém lembra quem foi. Há uma grande diferença entre ganhar e vencer. Portanto, para nós que torcemos pelos atletas brasileiros, Altobeli é um vencedor.

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    Se fizermos um exercício de entender o Oscar como a medalha de ouro na carreira de um ator, ficaríamos surpresos ao constatar que muitos artistas não chegaram ao topo do pódio: Glenn Close, Harrison Ford, Brigitte Bardot, Tom Cruise, Stanley Kubrick. Nenhum deles desistiu da carreira por ter sido preterido pela Academia, apesar das muitas oportunidades de vitória.

    O melhor comentário que vi sobre este episódio de Altobeli foi do medalhista Flavio Canto. “Daqui a uma semana ele estará pensando diferente”. O judoca foi feliz em sua análise. É preciso deixar a poeira baixar. Fora do calor dos acontecimentos, o atleta sentirá como a eliminação dos Jogos Olímpicos de Tóquio bate na sua autoestima – e mais: no seu propósito de vida.

    Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

     

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