Feminicídio: por que acontece e como combatê-lo
Promotora de Justiça comprova que para proteger as mulheres é preciso ir além: entender o que vai na cabeça dos homens e tratá-los
Dentre as muitas consequências do isolamento social e da pandemia – aumento do consumo de álcool, de drogas e de casos de depressão e ansiedade – havia a impressão de um crescimento de casos de feminicídio. Dia sim, dia não, a mídia se ocupava em relatar casos brutais de violência contra as mulheres. No entanto, recentes estatísticas atestam que não era só uma impressão: segundo as Secretarias de Segurança Pública de todos os Estados do Brasil, o país registrou, em 2020, o número recorde de assassinatos: 1.338 mulheres foram mortas por sua condição de gênero. Os números apontam uma trajetória ascendente: a violência ao sexo feminino já havia crescido 8% de 2018 para 2019. A maior ocorrência de casos aconteceu em São Paulo (179). Totalizando 78 crimes, o Rio de Janeiro ocupa o quinto lugar neste triste ranking, atrás de Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul.
Esta semana dois novos casos se somaram à mórbida lista. No primeiro, uma jovem de apenas 26 anos, foi encontrada morta em Itaguaí, depois de duas semanas desaparecida. Seu ex-marido está foragido. O segundo caso aconteceu em Jacarepaguá, em que uma moça de 25 anos pulou do carro após ser esfaqueada pelo ex-namorado, que foi preso e irá responder à Justiça por tentativa de feminicídio. Na maioria dos casos o algoz não apenas é conhecido da vítima, como é alguém que goza de sua intimidade, como namorados, noivos ou maridos: cerca de 60% dos casos de violência à mulher acontecem quando elas comunicam que querem o divórcio ou desejam romper o namoro.
O ascendente número de casos no Brasil está em consonância com o país em que vivemos e com a realidade que, cada vez mais, se desenha. Somos uma nação de cultura machista e violenta. Na esfera pública, há um amplo debate – liderado por homens – pelo direito de indivíduos civis andarem (mais) armados, alegando uma pretensa legítima defesa. Tal abordagem, em plena terceira década do século 21, chega a ser constrangedora, tamanho anacronismo com o que entendemos por civilidade. Desde 1990, a OMS trata o feminicídio como uma grave questão de saúde pública.
Mas as novas gerações não pretendem assistir à escalada de violência em silêncio. Devemos às cada vez mais numerosas (e ruidosas!) vozes feministas a reação em cadeia às práticas abusivas contra as mulheres. As recorrentes denúncias de violência comprovam o quanto movimentos como #MeToo impactam entre as mulheres mais novas, que não toleram mais certas atitudes. São elas, as jovens, que concretizam o fim do medo de ser julgada moralmente ou de sofrer represálias.
Segundo a promotora Gabriela Manssur, em depoimento ao documentário “O silêncio dos homens” (disponível gratuitamente no Youtube), a violência às mulheres é um problema de fundo social, mas também emocional dos homens. Uma tragédia que leva a outra. Estimulada pelas próprias mulheres violentadas, Manssur foi à raiz do problema para entender o porquê de aqueles homens agredirem e como fazer para que isso não voltasse a acontecer. “Todos os casos de feminicídio vem numa escalada de violência. Se você consegue impedir de alguma forma aquele homem de continuar, nesse fluxo, nesse ciclo, você consegue evitar a morte de uma mulher”. A partir daí, Manssur desenvolveu o “Tempo de Despertar”, um projeto de grupos reflexivos de homens autores de violência contra a mulher, um ambiente para discussão de construções sociais das relações entre homens e mulheres. Resultado: a reincidência em casos de violência caiu de 65% para impressionantes 2%.
A questão é grave, urgente, mas muito profunda. Com seu trabalho atento, empático e pleno de escuta, Manssur comprova que o feminicídio, portanto, deve ser tratado em todas as suas frentes – sociais, culturais, comportamentais – não apenas entre as vítimas, mas também seus agressores.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.