Em meio à gigantesca operação de orientação sobre a Covid-19, a Organização Mundial de Saúde (OMS) criou um novo programa para auxiliar fumantes a abandonarem o cigarro. À primeira vista, os assuntos parecem divergentes, mas não são.
O agravante que o tabaco pode significar para um quadro de Covid-19 já é uma das conclusões da ciência, porque ele potencializa as doenças respiratórias. A exposição à fumaça ou ao vapor de tabaco é o principal fator de risco para contraí-las. Assim, desenha-se um ciclo de comportamentos comprovadamente nocivo. “Fumar mata oito milhões de pessoas por ano. Mas se fumantes precisam de mais motivação para largar o hábito, a pandemia é o incentivo para isso”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da OMS.
O programa que incentiva o abandono do cigarro que a OMS acaba de anunciar combina terapias de reposição de nicotina e orientações de uma profissional de saúde. Detalhe: a especialista é virtual, criada a partir de inteligência artificial. A função de Florence – é esse o nome da minha nova “colega” de profissão – é dissipar informações incorretas sobre a combinação perigosa do tabaco com Covid-19, desenvolvendo planos personalizados para os fumantes largarem o vício.
A “terapeuta” Florence é capaz de interagir, se expressar e aprender de acordo com os padrões humanos. Munida destes recursos, ela simula uma conversa cara a cara usando câmera e microfone do computador para reconhecer pacientes, conseguir interpretá-los por meio do tom de voz e expressões faciais e, em seguida, responder suas demandas. A consulta será inteiramente online e gratuita. O projeto piloto terá início na Jordânia, onde o consumo de tabaco é o mais alto do mundo.
A ferramenta digital foi desenvolvida por uma empresa chamada Soul Machines, que se dedica a criar soluções de inteligência artificial a partir de pesquisas em neurociência, psicologia e ciência cognitiva. A iniciativa da OMS é mais um passo rumo a adoção definitiva da tecnologia na prática da Medicina. A saúde não é exceção. Lamento dizer aos tradicionalistas, mas este parece ser um caminho sem volta também em áreas como entretenimento, educação, mercado imobiliário e comércio.
Há exatamente um ano, o FDA, agência que regula o uso de medicamentos nos Estados Unidos, autorizou o lançamento do aplicativo de celular Somryst, que trata insônia e depressão de forma totalmente online. Algoritmos interpretam os dados do paciente e sugerem o tratamento personalizado para cada usuário.
Se por um lado a entrada concreta da tecnologia na área de atendimento psicológico e psiquiátrico amplia a democratização do acesso ao tratamento, por outro lado tende a reduzir o mercado de trabalho para os profissionais de carne e osso. É a subjetividade cedendo espaço aos algoritmos. O que pode parecer estranho para quem passou boa parte da vida de forma analógica, soa bastante razoável para os nativos digitais, que nasceram e cresceram resolvendo a vida através de cliques. No final das contas, quem ganha – inclusive financeiramente – neste cenário são as empresas de desenvolvimento de tecnologia, mais uma vez.
O mais interessante na iniciativa do recém-criado avatar Florence é o endosso de uma organização de prestígio como a OMS à inteligência artificial para tratar a saúde da população. Para nós no Brasil, que só agora estamos autorizados à atendimentos online por causa da pandemia, é curioso notar a abertura e interesse da OMS à inovação em prol do exercício da Medicina integrado ao nosso tempo. O futuro da psicoterapia já começou: é hoje.
***
O futuro da psiquiatria se desenhando no presente é o tema de uma palestra online na próxima 3a feira, às 19h30, com coordenação do psiquiatra Ives Cavalcante Passos e participação da psiquiatra Mirela Vasconcelos Moreno e a Mestre em Economia da Medicina Camila Crispiniano. Mais informações nas páginas da Espaço Clif no Instagram e no Facebook.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.