O choro é livre: as lágrimas de Bolsonaro e os homens que choram escondido
Ao confessar o choro solitário no banheiro, presidente faz pensar sobre os tabus da identidade masculina
Foi falando para uma plateia, em recente encontro com evangélicos, que o presidente Jair Bolsonaro assumiu que, às vezes, recorre à solidão do banheiro para chorar o peso da responsabilidade do cargo. “Uma decisão minha mal tomada, muita gente sofre. Mexe na Bolsa, no dólar, no preço do combustível”, justificou. O presidente não está sozinho em seu pranto. O choro foi um companheiro frequente de boa parte da população nos últimos meses, em que perdemos 600 mil brasileiros e fomos assombrados por medos, angústias e incertezas.
Mas será que, a exemplo do que diz o presidente, homem ainda precisa chorar escondido no banheiro? As conquistas feministas, que estão fazendo os homens repensarem o seu papel na sociedade, também não oferecem ao gênero masculino a possibilidade do simples – e humano – ato de chorar?
Embora ainda seja percebido socialmente como um gesto de fraqueza, chorar é fundamental para gerenciar o estresse e reestabelecer o equilíbrio da saúde mental. As lágrimas também são essenciais para a saúde física. Foi o que descobriu o bioquímico americano William Frey, da Universidade de Minnesota. Segundo sua pesquisa, as lágrimas contêm altos níveis de magnésio, potássio e prolactina. E a produção dessas três substâncias ajuda a, respectivamente, diminuir o colesterol ruim, controlar a pressão sanguínea, e fortalecer o sistema de defesa do corpo. Além disso, o estresse não extravasado aumenta o risco de infarto e danifica certas áreas do cérebro. “A habilidade humana de chorar tem um valor de sobrevivência”, resume o americano.
Portanto, se chorar é saudável, por que os homens tem tanta resistência? Aí entra um componente cultural: o gênero masculino é estimulado, desde cedo, a escamotear a expressão dos seus sentimentos. “Engole o choro! Homem não chora!”. Gerações de meninos ouviram essa frase e a reproduziram para as gerações seguintes. “Quantas vezes eu choro no banheiro em casa? Minha esposa nunca viu. Ela acha que eu sou o machão dos machões. Em parte, acho que ela tem razão até”.
A continuação do discurso de Bolsonaro confirma o componente cultural por trás do choro escondido. Para homens da geração do presidente, de 66 anos, o choro está diretamente associado à fraqueza e, consequentemente, à falta de virilidade. É uma leva de homens que, muitas vezes, desconhecem gestos de carinho de outros homens, como o próprio pai, e foram criados a base de punições severas. Para muitos – Bolsonaro entre eles –, a imagem de “machão” é definidora de identidade (mesmo que seja um machão que chora escondido no banheiro). No momento em que essa máscara social começa a ruir, as fragilidades se expõem e sabe-se lá o quê mais pode vir à tona. O rei fica nu.
Há um claro entendimento por parte das novas gerações que é preciso rever a educação dos seus filhos. A boa notícia é que isso está sendo posto em prática. Às meninas, é estimulada a independência e a liberdade, sonegada e mal vista por décadas. Quanto à educação dos meninos busca-se a construção de masculinidades mais amplas, que não são definidas apenas pela cor que veste. Neste século 21, é desejável que ser homem contemple a expressão de sentimentos até então considerados “femininos”, como carinho e afeto mas que, na verdade, são atos que transcendem o gênero: são humanos. E para que não reste dúvida: o choro é livre.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.