A indústria do cinema tem adoração pelos jovens. É de sangue novo que Hollywood se alimenta e é neles que, na maioria das vezes, põe as suas fichas na hora de distribuir prêmios. Se não fosse assim, jamais a insossa Gwyneth Paltrow teria vencido a nossa Fernanda Montenegro no Oscar de 1999. Mas o mercado audiovisual apenas reflete um ponto de vista da própria sociedade. É na modelo de pele sem vincos que as marcas de cosméticos põem maior parte da sua verba de marketing. São os corpos magros e de pouca idade que as grifes sobem à passarela. São os recém-saídos da faculdade que a mídia exibe na tela da televisão. A pandemia só veio agravar ainda mais esse comportamento, já que os idosos foram os primeiros a se recolherem em isolamento social.
Isso posto, é muito interessante que dois filmes indicados à maior premiação do cinema abordem, justamente, a velhice. Não o lado solar da velhice – e antes que você pergunte: sim, ele também existe. Há conquistas, sabedoria, entendimento e pacificação que apenas as décadas vividas são capazes de dar. Mas não é este o ponto de vista de “Meu Pai” (Now e Belas Artes À La Carte) e de “Agente Duplo” (GloboPlay). Tanto o longa inglês quanto o documentário chileno apontam suas câmeras, primordialmente, para a solidão, a perda de memória, a senilidade.
Adaptada para o cinema a partir de uma peça de teatro, “Meu Pai” mostra um Anthony Hopkins maduro, em sua melhor forma como ator, que lhe rendeu mais uma indicação ao Oscar. A filha, vivida por Olivia Colman (também indicada ao prêmio), está de namorado novo e precisa se mudar de Londres para Paris. O que fazer com o pai, que não apresenta mais condições de viver sozinho e se recusa a ser ladeado por acompanhantes? A direção e o roteiro precisos de Florian Zeller conseguem a façanha de colocar a nós, espectadores, no mesmo estado de confusão mental fruto da demência do protagonista. Para uma psiquiatra, o filme ganha camada adicional. A estrutura narrativa proposta por Zeller tem um efeito avassalador: oferece a possibilidade de experimentar o que conhecemos apenas por estudo e observação. Ao compartilhar das angústias de Anthony, passamos então a experienciar aquele universo que nos é íntimo por conta do diagnóstico a terceiros: os lapsos de memória, a sensação de perda no tempo, as dúvidas quanto ao que de fato aconteceu ou é apenas delírio e a demonstração de emoções lábeis, alternando da irritabilidade para a tristeza ou alegria em segundos. Nesse embaralhamento, o protagonista mistura a lembrança da filha morta e a presença da cuidadora, a saudade de casa e a realidade de um asilo.
É ele, o asilo, o cenário do filme chileno “Agente Duplo”, reconhecido pela Academia com uma indicação na categoria de melhor documentário em longa metragem. Em pouco menos de uma hora e meia, acompanhamos a missão de Sergio, um senhor na casa dos 80 anos e viúvo há quatro meses, que recebe a incumbência de se infiltrar num lar de idosos para descobrir se uma das hóspedes está sofrendo maus tratos.
Obrigado a aprender a usar aparelho celular, WhatsApp e outros gadgets que o ajudam na missão de espião, o que Sergio descobre é fôlego novo e uma razão para viver. “Estou me sentindo novo de novo, como quando sua mãe ainda estava viva”, diz ele à filha. E não é isso que todos queremos, independente da idade? Ao final de sua estada de três meses no asilo, o relatório de Sergio é claro e contundente: é a solidão que abriga naquele asilo. Os maus tratos não estão dentro da hospedagem, mas fora dela: na cruel ausência de familiares – alguns sem fazerem visitas há mais de um ano – que transforma asilos em depósitos humanos. A diretora Maitê Alberdi consegue um feito e tanto: criar um filme duro, mas terno; triste, mas esperançoso; emocionante, mas capaz de fazer sorrir.
“Meu Pai” e “Agente Duplo” servem como ótima reflexão sobre qual olhar iremos apontar para a velhice no Brasil. Segundo o IBGE, o Brasil tinha 32,9 milhões de idosos, em 2019. O número de pessoas com mais de 60 anos no país supera o de crianças abaixo de nove anos. Apenas entre 2012 e 2019, o país ganhou novos 7,5 milhões de idosos. Ou seja: somos um país com taxa de natalidade estagnada e em processo de envelhecimento. Como daremos um final de vida digno aos nossos idosos? Como aproveitar sua experiência acumulada? Como fazer justiça ao desequilíbrio de oportunidades que existem hoje entre jovens e velhos? São questões que o país não pode mais evitar.
Em um determinado momento de “Agente Duplo”, o protagonista Sergio senta-se ao lado de uma das moradoras do asilo, especialista em alegrar a todos recitando poesias. Mãe de quatro filhos, não vê nenhum deles há meses. A Sergio, ela confessa sua frustração com o descaso dos parentes. “A vida é cruel, no fim das contas”, conclui, resignada. Não precisa ser assim. Cabe a nós fazer diferente. Se não pela generosidade com nossos ascendentes, pela certeza que a chegada da velhice é apenas uma questão de tempo.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.