Quem viveu os anos 80 e 90, não se esquece da imagem do casal se aventurando em cima de uma moto e, quando chega ao seu destino, acende um cigarro (!) para comemorar a ousadia da travessia. Outra imagem facilmente associada às campanhas de cigarro era a bailarina de dança contemporânea, dando um pseudo ar chique e intelectualizado à outra marca, que chegou a patrocinar um festival de jazz famoso na cidade. Se voltarmos ainda mais no tempo, chegaremos aos cowboys, montados em seus cavalos, dando um trago contemplativo.
Tudo isso é coisa do passado. Saem de cena a bailarina, o motoqueiro e o cowboy. Agora, a indústria do cigarro se vale dos influenciadores nas redes sociais para propagar e vender o lifestyle associado aos cigarros eletrônicos, ou vapes, produtos movidos a bateria e projetados para fornecer nicotina e outros componentes químicos, em geral, e inicialmente fabricados de forma a se assemelhar ao cigarro convencional. Nos últimos anos, o mercado tabagista investiu no design, formato e cores, chegando até mesmo à forma de um pen drive. Como bem definiu a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (ABEAD), trata-se de “novos disfarces para velhos interesses”.
A legislação brasileira não proíbe o uso de cigarro eletrônico, mas a propaganda, a comercialização e a importação dos vapes é vetada desde 2009. Proíbe para inglês ver: as redes sociais estão lotadas de “publis” travestidos de posts inofensivos em páginas de pessoas que se identificam como “embaixadores” de marcas de cigarros eletrônicos, promovidos como mais naturais e menos danosos à saúde. Não resta dúvida que por trás dessa nova estratégia de marketing está a indústria do tabaco, fazendo ferrenha pressão para derrubar o veto à comercialização do produto. A publicidade em redes sociais atinge o público-alvo: de acordo com o Programa Nacional de Saúde do Brasil, prevalência de uso de cigarro eletrônico entre jovens de 15 a 24 anos já chega a 5,41%.
Porém, na verdade, os vapes também tem os seus perigos. Por trás da imagem de menos nocivo, o que acontece é uma diminuição da percepção do risco associado a essa modalidade de cigarro. De inofensivo eles não têm nada: há, pelo menos, 20 substâncias tóxicas ao organismo, escamoteadas pelo sabor do líquido tragado, que vão do cheesecake ao crème brûlée. Por não produzirem o cheiro característico do cigarro, acaba facilitando que os jovens o consumam até mesmo dentro de casa, sem que seus pais desconfiem do que se trata. Quanto aos não-fumantes, ficam mais suscetíveis à inalação passiva da fumaça dos vapes e seus cheiros travestidos pelas essências.
Outro perigo é que, sob o véu de ser menos danoso, os cigarros eletrônicos servem de porta de entrada para os jovens acabarem consumindo os velhos cigarros tradicionais. Eles não são isentos do risco de dependência da nicotina. Ao contrário: alguns vapes possibilitam até a inalação de mais nicotina que os cigarros tradicionais. Os cigarros eletrônicos também podem conter THC, a substância psicoativa da maconha, o que aumenta o risco de dependência dessa substância e do uso da própria maconha. A longo prazo, seu uso pode acarretar alterações no cérebro, fazendo com que eles tenham mais doenças no futuro, como risco de AVC, infarto, além da dependência de outras drogas.
É preciso elucidar os fatos em nome do bem-estar e da saúde da população. Não há nenhum “hype” em torno aos cigarros eletrônicos, conhecidos como vape. O que há, isso sim, é desinformação e má fé por trás de sua cortina de fumaça saborosa. Quando o assunto é cigarros, tradicionais ou eletrônicos, o mais indicado é manter-se longe deles.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.