Durante décadas, tentaram incutir em nós, brasileiros, a ideia de que somos um povo pacífico e cordial. O conceito caiu por terra nos últimos 20 anos, coincidência ou não, desde o surgimento das redes sociais. Repleta de prós e contras, uma coisa não se pode negar às redes: elas deram projeção a quem sempre foi relegado apenas o lugar de escuta. Ouvintes passivos assumiram o lugar de agentes influenciadores, tomando para si denúncias e ativismo em torno de causas identitárias. Oprimidos, finalmente, ganharam voz. E nesse movimento, divisor de águas na história contemporânea, ficou explícito um lado da personalidade pátria que nos envergonha: o do preconceito. Ele aparece em diferentes aspectos, seja de raça, gênero, religião e por orientação sexual. O mais recente caso é a reação de parte dos brasileiros à escolha de Thammy Miranda, homem trans e pai do pequeno Bento, para protagonizar a campanha de Dia dos Pais da Natura.
Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, feita em 150 municípios do Brasil, 19% dos entrevistados declaram sentir repulsa, ódio ou antipatia por gays. O número cresce para 20% a respeito de lésbicas e 22% sobre travestis. O brasileiro tolera se divertir com homossexuais sendo ridicularizados em novelas ou programas de humor, mas não se envergonha em declarar abertamente seu sentimento de ódio por esta parte da população.
O resultado de tamanha fobia a trans e homossexuais se traduz em números vergonhosos para qualquer nação que se pretenda civilizada. A cada 28 horas, um LGBT é morto no Brasil, posicionando o país em primeiro lugar neste ranking cruel. Entre travestis e transexuais, a expectativa de vida é de 36 anos, menos da metade dos 73 anos do restante da população. Desde 2008, ocorreram 1.374 assassinatos de trans em 60 nações. Deste total, 539 mortes aconteceram aqui, ou seja 40%. Em um país cujo líder maior da nação declara que preferia ver um filho morto a ter um filho gay, não é de se espantar números tão expressivos de violência contra LGBTs. No entanto, são informações que envergonham – ou deveriam envergonhar – a todos nós, independente da orientação sexual que se tenha.
Numerosos estudos tem pesquisado o impacto que a discriminação e preconceito podem causar em pessoas LGBTQIA+. A conclusão é que eles relatam mais casos de problemas de saúde mental, quando comparadas aos heterossexuais e cisgêneras. Isso fica evidente nos altos índices de depressão, ansiedade, suicídio e dependência de substâncias entre este público.
Já entre os jovens LGBTs que relataram alta rejeição familiar, houve 8,4 vezes mais chances de tentar suicídio; 5,9 vezes mais chances de experimentar altos níveis de depressão e 3,4 vezes mais chances de usar substancias ilícitas do que aqueles que relataram pouco ou nenhum problema com parentes.
Mas, felizmente, há muitas forças de resistência agindo e dando visibilidade à causa. Neste ano de pandemia, a Parada Gay de São Paulo, uma das maiores do mundo, aconteceu em edição online e foi emocionante. A doação de sangue por homens gays foi finalmente autorizada pelo Supremo Tribunal Federal. Formadores de opinião e ativistas, conquistam cada vez mais espaço e audiência, como a sensacional Rita Von Hunty e Felipe Neto. Séries como “Pose”, “Hollywood”, “The Politician”, “Ru Paul’s Drag Race”, entre as mais populares do Netflix, celebram e reafirmam o orgulho LGBT, especialmente entre o público mais jovem, mostrando personagens realizados em suas jornadas, com auto estima bem construída. Trata-se de um passo gigantesco.
A causa LGBTQIA+ atravessa diferenças ideológicas de qualquer ordem e deve ser defendida por todos os brasileiros em nome da nossa civilidade – ou do que ainda resta dela.
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Se você ficou interessado em saber mais, “Preconceito e saúde mental” é o tema de uma palestra online na próxima 3a feira, às 19h30, coordenada por mim e com participação do cantor Ney Matogrosso, da Delegada Federal da Saúde da Mulher, Samy Fortes, e dos psiquiatras Alessandra Diehl e Gabriel Landsberg. Mais informações nas páginas da Espaço Clif no Instagram e no Facebook.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.