Voltamos para a escola depois dos falsos feriados de Carnaval, festa que não aconteceu para evitar aglomerações por causa da Covid-19. Mas o século 21 não quer nos deixar dormir sossegados. Quando a pandemia começa a se abrandar, a Rússia invade a Ucrânia, uma guerra se instala e a humanidade se vê diante de mais uma ameaça grave. E retornamos à escola com outra inquietação. No atual momento histórico, a lista de nossas apreensões se alonga, com todas as consequências das tecnologias digitais, a revolução biotecnológica, a revolução quântica, a inteligência artificial, o aquecimento global com as mudanças climáticas, a degradação ambiental, a pandemia de Covid-19, que nos mostrou que podem haver outras, e, mais recentemente, as ameaças de guerra nuclear. Acreditamos que estes são motivos principais de nosso desassossego, mas não os esgotam. Aceitamos contribuições.
Como a escola vai receber as crianças e jovens hoje? A tendência é não falar da guerra, na ilusão de que as crianças não pensam nisso. Crianças e jovens que passaram pela pandemia, com dois anos fora da escola, acabaram de voltar às aulas presenciais, ainda com máscaras, sabem perfeitamente da guerra, que é transmitida em tempo real nas telinhas dos smartphones. Só faz sentido pensar em matérias, currículos e conteúdos se for para relacionar com a realidade que estão vivendo. É fundamental deixa-los pensar, refletir, trocar ideias, tentar pensar como o outro, como quem pensa diferente.
O assunto é importante porque os alunos vivem no cenário TikTok, uma plataforma digital que tem de tudo e para onde contribuem com seus vídeos. Uma imagem marcante do começo da invasão é uma imagem do TikTok, mostrando mísseis caindo sobre a cidade de Kyiv como se fossem fogos de artifício. Acompanha o vídeo uma música de uma banda indie-pop MGMT, que todos os jovens conhecem, cuja letra se tornou uma espécie de meme no TikTok – “Saiba que, se você esconde, não desaparece” – e segue as normas estéticas da plataforma: agitado, descontextualizado, com música pop no fundo. É a “primeira guerra TikTok”, dizem algumas publicações.
Fórmulas usadas em mídias tradicionais têm sido usadas nos vídeos TikTok, como um que mostra um soldado ucraniano uniformizado fazendo a caminhada “moonwalking” de Michael Jackson em um campo vazio. Ganhou mais de doze milhões de curtidas e centenas de milhares de comentários. Um outro vídeo, que segue um modelo popular no Tiktok, em que os usuários apontam várias partes de suas casas enquanto ao fundo toca uma música italiana, mostra um ucraniano apontando coisas no que chamou de seu “abrigo de bombas”, como um ginásio, dois banheiros e um “café da manhã militar ucraniano” de bananas e iogurte. Outro documenta um “dia típico durante a guerra na Ucrânia” e termina com o clipe de um cinema que havia sido bombardeado. Um podcast, outro tipo de plataforma digital atual, disse que a invasão da Ucrânia é “a maior guerra on-line de todos os tempos até a próxima”. Piadas, muitas gracinhas e, ao mesmo tempo, documentos dramaticamente sérios.
Esses vídeos de guerra falam aos usuários do Tiktok – que são os nossos alunos – em sua própria língua e no ambiente que conhecem bem. Neles, os ucranianos não parecem vítimas distantes, mas colegas de web, que conhecem as mesmas referências, ouvem a mesma música e usam as mesmas redes sociais. O conteúdo dos clipes e os espaços digitais em que são consumidos criam uma sensação de intimidade, que é diferente de fotografias. A guerra virou conteúdo, fluindo em todas as plataformas ao mesmo tempo. Imagens se tornam virais, ganham milhões de visualizações no YouTube, Tiktok e nos sites de várias publicações de notícias.
A Guerra do Vietnã foi a primeira a ser televisionada e fez da carnificina em zonas de conflito “um ingrediente rotineiro no fluxo incessante de entretenimento doméstico na tela pequena”, escreveu Susan Sontag no livro “Olhando a dor dos outros” (Regarding the pain of others), de 2003. Agora, a tela pequena são os smartphones e a filmagem acontece o dia todo, ao lado de debates sobre a final de série de TV, fotos de bichos fofos e atualizações sobre outros desastres contemporâneos. As várias formas de conteúdos se sobrepõem, sem hierarquia. O alimento algorítmico do Tiktok torna particularmente fácil consumir passivamente um vídeo e passar para o próximo sem questionar o conteúdo. Um usuário diz que assiste a um filme sobre a fome, seguido de filmes sobre crimes de guerra e depois um anúncio de hidratante, todos dentro dos 30 segundos de cada um.
Existe um gato famoso na Internet, chamado Stepan, que tem uma conta no Instagram. Acumulou um milhão de seguidores. Seu dono vive na Ucrânia e, recentemente, deixou de compartilhar retratos de animais fofos para postar fotos de um ataque de mísseis em Kharkiv. Uma evidência da guerra que pode acordar o espectador da “deslocalização” da Internet e lembrar que está assistindo a pessoas reais em perigo real.
Segundo Susan Sontag, a mídia social é efêmera por design, mas o consumidor pode ter uma experiência imediata e imersiva de uma situação que está acontecendo naquele momento. Uma mulher que dá à luz no abrigo de uma estação de metrô em Kyiv, famílias que se amontoam com seus gatos e cachorros, um pai ucraniano diz um adeus choroso à família, um trator que parece rebocar um tanque russo abandonado, um homem britânico a arrumar uma mochila para ir resgatar esposa e filho na Ucrânia – são trechos que apresentam uma montagem da vida no tempo de guerra, que evocam no espectador pensamentos sobre como reagir em circunstâncias tão difíceis, com apenas uma câmera de telefone. O próprio presidente ucraniano Zelensky faz uso dessa sensação de proximidade da mídia social, enviando seus vídeos selfies gravados na rua. Usa o formato para mostrar que continua no país, lançando-se como Davi contra Golias.
As atualizações de uma guerra com pedaços de mídia digital a torna ainda mais caótica. É trabalhoso determinar se uma postagem é “verdadeira” e não de alguma “página de guerra” que tenta acumular seguidores. Na semana passada, um videoclipe com o título de “O fantasma de Kyiv”, na verdade, era um videogame chamado D.C.S. Mundo, com imagens granulosas como se fossem filmagens. E mesmo com o vídeo sabidamente falso, as pessoas o compartilharam, como fizeram com outros tantos, como o vídeo mostrando descida de pára-quedistas russos em 2016, a queda de um raio em uma usina como se fosse um ataque militar. O conteúdo na internet segue leis de movimento, seja mostrando a invasão de um país ou um gato subindo numa árvore. Alguma coisa seduz e o torna popular, independentemente da sua proveniência ou qualidade.
O objetivo das imagens é testemunhar e o espectador interpreta o que vê. Uma atrocidade pode dar origem a respostas opostas, como um clamor por paz ou por vingança, ou simplesmente confundir ainda mais as mentes incessantemente abastecidas por imagens terríveis do que acontece. As fotos da linha de frente de batalhas são um símbolo visual do custo humano de uma guerra desnecessária e são imagens potentes o suficiente para se alojar em nossas mentes e mais ainda na mente de crianças e jovens.
Os vídeos do Tiktok podem embaralhar nossa compreensão e a exposição excessiva à violência pode acabar por banalizar o mal e tornar frágil o sentimento de solidariedade pelo sofrimento. Aqui entra a escola com sua função mais importante que é a de apoiar os alunos no desenvolvimento de sua capacidade de pensar. Saber pensar é mais importante do que acumular conteúdos descontextualizados. O conteúdo é o que acontece no mundo, é tudo a que se assiste, se lê, se escuta.
Vamos receber os alunos propondo uma conversa sobre o que assistiram no TikTok, o que pensam sobre as mídias que usam, como as usam, orientando-os para uma reflexão sobre a realidade à volta para que aprendam a criticar e discutir com seriedade e profundidade os fatos e acontecimentos da vida.