Fevereiro, o mês da purificação, para os romanos, e do Carnaval, para nós brasileiros. ‘Februs’ ou ‘Februarius’ no latim significava o período de queimar, jogar as cinzas sobre solo para preparar a plantação. Momento de planejar o que se pretende colher. Neste contexto em que ainda precisamos lutar para expurgar o fim da pandemia e o crescimento do fascismo, celebrar é fundamental. E nada melhor que começar fevereiro, o mês que oficiosamente marca o início do ano, com o aniversário de Lélia Gonzalez (1), seguido por Elisa Lucinda no mesmo Dia de Iemanjá (2), Zeca Pagodinho (4), Martinho da Vila (8) e, por último, Dra. Nise da Silveira (15), que foi a motivação para a criação do Bloco Loucura Suburbana.
Por falar no Loucura, seu desfile aconteceu exatamente nesta quinta-feira (16) e, como sempre, tomou as ruas do Engenho de Dentro com a alegria característica dos subúrbios. Vale destacar que o samba campeão do bloco, neste ano de 2023, foi composto pela amiga suburbana, professora, cantora e poeta Elaine Morgado.
Já nesta sexta-feira (17), na abertura do Carnaval Carioca, é dia do Arranco do Engenho de Dentro e da Lins Imperial iniciarem os desfiles na Marquês de Sapucaí homenageando, respectivamente, dois personagens negros e suburbanos fundamentais para nossa identidade carnavalesca, Zé Espinguela e Madame Satã.
Precisamos falar mais sobre o protagonismo suburbano. É inegável que a história do carnaval, da mesma forma que sua atual produção, continue partindo das centralidades suburbanas em direção a toda cidade, assim como para o país e todo o mundo a fora.
Para nos ajudar a melhor entender essa importante história, convidamos o historiador Adriano de Macedo Garcia, formado pela UFRJ e com Pós-graduação em História e Cultura Afrodescendente na PUC -Rio.
Adriano nos conta que “O Rio de Janeiro é verdadeiramente uma cidade vaidosa, é certo que tem inúmeros motivos para se orgulhar. Como já foi dito muitas vezes, possui os times de futebol mais populares do Brasil e é o epicentro de uma das maiores festas populares do mundo, o Carnaval.
Idos os tempos do entrudo, dos ranchos, cordões e grandes sociedades, as escolas de samba assumiram o protagonismo dos festejos momescos.
E a força dessa festa está para além da cidade carioca, vide Beija-Flor de Nilópolis, Grande Rio de Duque de Caxias, Unidos da Ponte de São João de Meriti, apenas para citar algumas. Mas a raiz forte das escolas está nos morros e favelas do Rio. Desde o ‘Bloco dos Arengueiros’, durante os anos 1920, onde surge a ‘Estação Primeira de Mangueira’; passando pelas ‘Baianinhas de Oswaldo Cruz’ e posterior ‘Vai Como Pode’, temos a origem da centenária Portela; do ‘Prazer da Serrinha’, o querido ‘Império Serrano’, e de dois blocos do Morro do Salgueiro, a escola que originou grandes carnavalescos (Fernando Pamplona e Joãozinho Trinta, além do famoso diretor de carnaval Laíla). Claro que estou falando da ‘Acadêmicos do Salgueiro’. Mas tem escolas menos famosas nos subúrbios, porém muito importantes. A ‘Em Cima da Hora’, de Cavalcanti; a ‘Lins Imperial’, do bairro Lins de Vasconcelos; a velha ‘Vizinha Faladeira’, do Santo Cristo; e a ‘Unidos de Lucas’, de Parada de Lucas, só para dar alguns exemplos.
Mas e o Méier ou o Catete? Ou outros lugares do Rio? No caso do Catete, era terra do rancho mais famoso do Rio de Janeiro, chamado de rancho escola em livro do jornalista Jota Efegê. E ainda tinha outro rancho chamado Arrepiados, nas cores verde e rosa que encantaram um certo Cartola que as posteriormente atribuiu à Mangueira.
O coração do Rio de Janeiro bate no ritmo da maior manifestação carnavalesca do mundo, passando em grande parte pela Marquês de Sapucaí ou na Intendente Magalhães, esse ano repaginada na Rua Ernani Cardoso. E o Rio, ex-cidade capital, quem diria, influenciou São Paulo, Espírito Santo, Manaus, Rio Grande do Sul e tantos outros lugares que se espelharam no brilho das escolas de samba de São Sebastião do Rio de Janeiro. Carnavalesticamente chamada de Sebastianópolis.
Quem diria que as pequeninas agremiações de samba dos morros e subúrbios, surgidas nos anos 20 do século passado, criadas por negros pobres com as bênçãos de mães de santo e buscando licenças da polícia, por nomes como Cartola, Ismael Silva e Paulo da Portela, hoje seriam tidos como patrimônios. Mas, na época, esses jovens ainda desconhecidos ajudariam a construir um dos maiores espetáculos da Terra.
Hoje ninguém lembra que no início dos desfiles e mesmo até os anos 1940 a maior subvenção da prefeitura era recebida pelas grandes sociedades. As escolas de samba se impuseram e alcançaram o apogeu do Carnaval carioca.”
Adriano aproveita para finalizar sua fala rememorando um samba que ajudou a dar o vice campeonato para a Portela, em 1995. A escola que sempre canta e encanta os subúrbio de Madureira e Oswaldo Cruz. Um trecho particular do samba ‘Gosto Que Me Enrosco’ é uma ode à história do carnaval feito pela Portela, que afinal comemora merecidamente seus cem anos.
“Dos ranchos, blocos e cordões
Dos mascarados nos salões
Pierrot beijando a Colombina
Chuva de confete e serpentina
Dos bondes, ficou a saudade
Ah! Que saudade do luxo das Sociedades
Abram alas, deixa a Portela passar
É voz que não se cala
É canto de alegria no ar“
Não podemos esquecer de citar o pioneirismo do samba do Estácio, que começou com o bloco ‘Deixa Falar’. Fundada em 12 de agosto de 1928, a ‘Deixa Falar’ desfilou como bloco nos carnavais de 1929 e 1930. Em 1931, já se organizava como rancho e foi nesta contexto que Ismael Silva criaria o famoso Samba de Sambar do Estácio. Por lá também foram inventados o surdo (criação de Alcebíades Barcelos – o Bide) e a cuíca (de João Mina).
Por fim, não esqueceremos também da Unidos da Tijuca, uma das mais antigas escolas de samba do Rio. Criada na casa da família Vasconcelos, num dia 31 de dezembro de 1931 na Rua São Miguel, a Escola foi fruto da fusão de blocos dos morros da Casa Branca, Formiga e Ilha dos Velhacos, tendo se consolidado posteriormente no Borel.
Terminamos com uma bela reflexão trazida pelo historiador e doutor em Antropologia, Vinícius Natal. O pesquisador da atual campeão do carnaval, a Grande Rio, é suburbano convicto e nos fala sobre a importância de trazer um enredo sobre o Zeca Pagodinho para avenida, em 2023.
“O subúrbio é a alma que costurou a história da cidade, neste enredo estamos trazendo para o centro do debate o próprio subúrbio, suas contradições e suas belezas. Isso é fundamental pra a gente entender o que é o Brasil.”